Agostinho se Retratou dos seus erros Quanto à Doutrina da Dupla Predestinação?
PERGUNTA
Desculpa, mas Agostinho, antes de morrer, não se retratou sobre suas doutrinas de dupla predestinação no livro Retratações? Os católicos, por exemplo, não creem nessa dupla predestinação pregada pelos calvinistas.
RESPOSTA
Oi, tudo bem? Na verdade, não é bem como você está pensando. Parece-me que você não conhece bem o contexto do assunto e da própria história em si. Deixa eu te ajudar.
Agostinho nasceu em 354 d.C. e morreu em 430 d.C., foram 76 anos, ao todo. Ele viveu 10 anos no Gnosticismo Maniqueísta e se converteu ao Cristianismo com 32 anos, em 386 d.C. A partir daí ele começa a escrever cartas e textos expressando sua nova fé. Alguns dos primeiros textos, inclusive, foram destinados a conhecidos e amigos que estavam na mesma religião da qual ela havia saído, o Maniqueísmo (que é um seguimento do Gnosticismo, na verdade).
De 386 a 411 d.C. Agostinho se manteve naquilo que era considerado a ortodoxia cristã da época e também escrevia contra os pensamentos pagãos do Gnosticismo maniqueísta e do Neoplatonismo. Coisa que outros teólogos, pais apostólicos e outros pais da igreja também faziam comumente. Nesta fase da sua vida ele defendia a completa e total liberdade humana para escolher entre o bem e o mal e defendia a responsabilidade humana para crer em Deus por meio dos testemunhos deixados por ele no mundo, tanto através da sua revelação geral (as coisas criadas desde o princípio do mundo), quanto através de uma revelação mais específica (a palavra escrita inspirada por Deus). Porém, durante suas disputas intelectuais com outro pensador cristão chamado Pelágio, ele começou a desandar, e por fim, se pôs completamente fora dos trilhos da tradição cristã até então.
Todos os escritos de Agostinho do ano 412 d.C. em diante, refletem essa nova e última fase na sua vida, onde ele passa a desenvolver sua teologia determinista. Ele passa a formular uma espécie de predestinação unilateral de destinos individuais com base num sincretismo que ele mesmo dera origem. Nesta época ele usou termos cristãos tradicionais e os preencheu com novos significados filosóficos extraídos das filosofias que antes combatia. Os elementos do determinismo ele extraiu do Estoicismo e Neoplatonismo e os elementos de uma suposta inabilidade humana de conhecer a Deus, ele extraiu do Gnosticismo Maniqueísta. Inclusive, as mesmas interpretações de versículos bíblicos que eram feitas pelos seguidores destas filosofias e religiões, ele também passou a adotar.
Foi nessa fase da sua vida que ele escreveu o livro “Retractationes”, ou seja, as tais das “Retratações”, que você havia comentado. Este livro fora escrito entre os anos 426 e 427, três anos antes da sua morte. Porém, diferentemente do que poderíamos pensar pelo título do livro, ele não estava se retratando do que nós sabemos que eram erros doutrinários defendidos por ele do ano 412 d.C. em diante. Ele “se retratou” das coisas corretas que ele ensinava no começo da caminhada, quando não cria na “inabilidade humana para crer em Deus”, quando não cria na “Eleição Incondicional e Predestinação Unilateral dos Destinos Eternos dos Indivíduos”, quando não cria no “Dom da Perseverança” concedido aos “eleitos” para que nunca conseguissem deixar de crer até o fim da vida.
A partir de Agostinho, outros proponentes surgiram defendendo as suas ideias extremadas de predestinismo e soberanismo, tanto do lado Católico Romano, quando do lado dos Protestantes. O único seguimento cristão que se manteve imune às loucas influências de Agostinho foram os cristãos de tradição textual grega, como, por exemplo, a Igreja Ortodoxa. Somente os que estiveram debaixo da influência da tradição textual latina, que tiveram que enfrentar as suposições filosóficas de Agostinho. O mundo cristão oriental nunca o considerou grande coisa e nunca houve problemas semelhantes do lado de lá.
No século IX, um monge chamado Goltescalco, que viveu entre os anos 803 e 869, aderiu ao mesmo extremismo da “dupla predestinação” inventada por Agostinho, que a criou baseando-se em filosofias pagãs. Outro partidário da predestinação agostiniana foi Thomas Bradwardine, que viveu entre os anos 1290 e 1377. Contemporâneo a Thomas Bradwardine também houve o predestinista agostiniano chamado de “Gregório de Rimini” (1300 a 1358). Lutero e Calvino, durante o período da Reforma, também seguiram as ideias predestinistas de Agostinho. Embora, posteriormente, Lutero tenha dito que percebeu que Agostinho não estava alinhado com as Escrituras e deixou de concordar com ele em alguns pontos, não todos. Entre os católicos romanos, depois da Reforma, existiu um professor de teologia da Universidade de Louvain, na Bélgica, chamado Cornélio Jansênio, que viveu entre 1585 e 1638, que reafirmou as crenças absolutistas inventadas por Agostinho.
É verdade também que a igreja naquela época fazia reuniões, chamadas de concílios ou sínodos, nos quais discutiam questões relacionadas a essas doutrinas, e, por fim, reconhecia uma parte e rejeitava outras. No segundo Concílio de Orange em 529, por exemplo, decidiram parcialmente contra Agostinho, especialmente em relação à ideia de uma “graça irresistível” e de que a predestinação seria o resultado de “uma decisão soberana e unilateral de Deus”. De fato, foi decidido em tal concílio que, se alguém declarasse, como Agostinho, que “Deus destinou certos indivíduos à condenação”, tal pessoa deveria ser considerada como maldita. Em 848 aconteceu o Sínodo de Mainz onde o monge alemão Goltescalco foi condenado, e, posteriormente, destituído do sacerdócio, açoitado e aprisionado pelo resto de seus dias em certo monastério.
Apesar de sempre ter havido alguma prudência entre os homens para identificar e condenar as heresias deterministas inventadas por Agostinho, muitas mazelas não puderam ser evitadas. Muitas desgraças aconteceram na história da Igreja por causa das suas ideias deturpadas de uma graça supostamente irresistível e das suas ideias de salvação por imposição. Além do fato, é claro, das perseguições e assassinatos que ele promoveu contra os “pecadores e heréticos predestinados ao inferno”. O historiador J. A. Neander (1789 – 1850) disse ter percebido que as teorias absolutistas e deterministas de Agostinho continham o germe para um sistema de despotismo, intolerância e perseguição religiosa que, futuramente, seria a base para Inquisição.
Sabemos que John Gill tentou relacionar alguns textos da patrística com as distorções predestinistas de Agostinho em seu livro “The Cause of God and Truth” publicado em 1738, mas seu esforço foi desprezado ou rechaçado pelos eruditos especialistas em Patrística. Depois, no ano de 1991 Michael Horton inseriu algumas das informações de John Gill em seu livro publicado naquele ano com o título de “Putting Amazing Back into Grace”, mas, depois, em uma nova edição publicada em 2011, todas as citações de Gill que alegavam qualquer defesa predestinista antes de Agostinho, foram retiradas do livro.
A desinformação a respeito das origens do Calvinismo é imensa. Não porque nos faltem documentos que relatem os fatos desde quando tudo começou, e sim porque não temos tanta curiosidade para buscar tais informações. Nos acomodamos com aquilo que nossos pregadores prediletos nos contam e nos damos por satisfeitos.
Ao responder a pergunta de um amigo em um dos meus vídeos, escrevi esse pequeno resumo, que, no momento, está sem as referências bibliográficas, mas quase todo o conteúdo foi retirado do livro de Vance (O outro lado do Calvinismo), de Justo González (Uma breve história das doutrinas cristãs) e do livro de Ken Wilson (The Foundation of Augustinian-Calvinism). Espero que sirva de referência para os estudos de vocês.