O “Espinho na Carne”
Muita gente tem dúvidas sobre o que seria o tal do “espinho na carne” mencionado por Paulo em 2Coríntios 12.7. As especulações são diversificadas e algumas sugestões oferecidas são bem “criativas”, para não dizer ridículas.
Em primeiro lugar, é importante deixar claro que Paulo não estava necessariamente falando sobre um incômodo físico, uma deformação física ou uma doença em seu corpo. A expressão “espinho na carne” parece estar sendo usada por ele como uma ilustração para retratar o problema do qual ele vem discutindo. Paulo não estava dizendo que tinha uma espécie de furúnculo na barriga ou que estava com um pedaço de farpa preso nas costas. Ele não estava usando a expressão de forma literal ou para apontar algum tipo de problema físico.
Expressões semelhantes a essa aparecem em textos do Antigo Testamento, quando Deus explica aos Israelitas, o incômodo que será a presença dos antigos habitantes da Cananéia ao redor da futura nação de Israel. Em Números 33.55 o Senhor os alertou: “Se não desapossardes de diante de vós os moradores da terra, então, os que deixardes ficar ser-vos-ão como espinhos nos vossos olhos e como aguilhões nas vossas ilhargas e vos perturbarão na terra em que habitardes”. A Nova Versão Transformadora, ao traduzir Números 33.55, usa as expressões “farpas em seus olhos e espinhos em suas costas”. A Almeida 21 diz “farpas nos olhos e espinhos nas costelas”. A Tradução do Novo Mundo traduz por “ciscos nos seus olhos e espinhos na sua carne”. A versão “O Livro”, colocou assim: “Os que lá ficarem vos farão arder os olhos, ser-vos-ão como espinhos na carne”.
A ideia apresentada ali é de que a presença dos antigos habitantes, que permanecessem por lá, seria um desconforto muito desagradável para a existência dos israelitas na terra. Em nossa cultura, nós retrataríamos esta situação incômoda com a expressão “pedra no sapato”.
O mesmo assunto é mencionado uma segunda vez em Josué 23.13. Na Nova Versão Internacional está escrito o seguinte: “Estejam certos de que o Senhor, o seu Deus, já não expulsará essas nações de diante de vocês. Ao contrário, elas se tornarão armadilhas e laços para vocês, chicote em suas costas e espinhos em seus olhos, até que vocês desapareçam desta boa terra que o Senhor, o seu Deus, deu a vocês”. Armadilhas e laços. Chicote nas costas e espinhos nos olhos. A mesma ideia de oposição agressiva, que causa um desconforto muito desagradável. É esta a ideia que Paulo tem em mente quando usa a expressão “espinho na carne” ao mencionar aquilo que o atrapalhava na obra de Deus.
Na verdade, o próprio Paulo explica claramente o que seria aquilo que ele quis chamar de “espinho na carne”. No texto abaixo, observe a explicação entre vírgulas, que tem o objetivo de esclarecer a declaração inicial.
2Coríntios 12.7
E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, um mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte.
Paulo está dizendo, com todas as letras, que o espinho na carne era um “mensageiro de Satanás”. A palavra traduzida por “mensageiro” é a palavra grega para “anjo”. O texto está falando que o “espinho na carne” era um anjo de Satanás, que segundo Paulo mesmo diz, havia sido enviado para esbofeteá-lo. Observe bem: um anjo de Satanás, enviado por Satanás, para causar-lhe mal e não bem!
Além disso, por causa de um erro de tradução, o texto pareceu estar falando que esse “espinho” era uma bênção na vida de Paulo. Como se fosse algo que o próprio Deus “tivesse posto” na vida dele para “mantê-lo humilde”. Esse tipo de conclusão se deve às frases mal traduzidas que iniciam e fecham o versículo: “para que não me ensoberbecesse” e “afim de que não me exalte”. Assim, muitos concluem o raciocínio da seguinte forma: “Ora, se foi-lhe posto o tal espinho e se o objetivo do espinho seria para sua humildade, então, Deus deve ter posto isso nele, pois tudo fazia parte de um plano divino”.
A palavra grega, que neste versículo aparece duas vezes, e é traduzida dando a ideia de “ensoberbecimento” e “auto exaltação” é a palavra ὑπεραίρωμαι (“hiperairomai”). Observe que na construção do vocábulo aparece a palavra “Híper”, conhecida em nosso idioma e também oriunda do grego. De fato, hiperairomai não é uma palavra com denotações negativas. A palavra pode ser usada apenas para fazer referência a alguma coisa que esteja “acima” ou “sobre” outra, e, dependendo do contexto, pode ser usada com a ideia de “erguer” ou “levantar”. Para exemplificar, observe o uso da mesma palavra na versão grega do Antigo Testamento, nos dois versículos abaixo.
Provérbios 31.29
Muitas mulheres procedem virtuosamente, mas tu a todas SOBREPUJAS.
2Crônicas 32.23
Muitos traziam presentes a Jerusalém ao Senhor e coisas preciosíssimas a Ezequias, rei de Judá, de modo que, depois disto, foi ENALTECIDO à vista de todas as nações.
As palavras em caixa alta e negrito, que aparecem nos versículos acima, foram traduzidas do hebraico para o grego, na Septuaginta (LXX), com a mesma palavra “hiperairomai” de 2Coríntios 12.7. A diferença é que no contexto de 2Coríntios os editores acharam que Paulo estaria falando sobre “se exaltar”, no sentido de “ficar soberbo”. Porém, um pouquinho mais de atenção teria evitado esta suposição sem sentido.
Se os tradutores tivessem considerado o contexto apresentado por Paulo em segunda Coríntios e fossem melhor familiarizados com a teologia paulina, eles não teriam seguido este caminho obscuro de interpretação. Afinal, eles simplesmente sugeriram que “Paulo tinha tantas revelações, que, Deus, preocupado com ele, enviou um anjo de Satanás para bater nele, com o objetivo de manter ele humilde através disso”. Que loucura, não?
Na verdade, considerando o domínio semântico da palavra mal traduzida e aplicando a mesma lógica de tradução dos textos do Antigo Testamento onde ela aparece, conseguiríamos entender melhor o que Paulo estava realmente dizendo. Observe:
“Para que não me sobressaísse em meus trabalhos com as grandes revelações que Deus me deu, Satanás enviou um emissário para tentar me deter, uma pedra no meu sapato, cujo objetivo é impedir meu avanço e meu sucesso”.
Alguns pontos importantes que devem ser claramente compreendidos: Não foi Deus quem enviou aquele anjo. O objetivo daquele emissário diabólico era impedir que Paulo se sobressaísse na obra de Deus. O texto não está falando sobre soberba e humildade, e sim sobre a oposição que enfrentamos neste mundo onde Satanás é deus.
Paulo não estava dizendo que Satanás cooperava para que ele fosse um cristão melhor, mantendo-o humilde. Paulo tinha tanta consciência do mal que aquele anjo lhe causava, que, por três vezes, chegou a pedir a Deus que o afastasse dele. No entanto, se fosse possível expulsar Satanás deste mundo para que pudéssemos pregar o Evangelho sem oposição, perseguições ou sofrimentos, certamente Jesus teria feito isso antes mesmo de Paulo ter se convertido.
Por analogia, poderíamos dizer que a presença de Satanás e seus anjos neste mundo, causa em nós o mesmo desconforto desagradável que os israelitas experimentavam quando os remanescentes dos seus inimigos continuaram na terra. Contudo, a resposta de Deus a Paulo, também serve para todos nós: “A graça de Deus é suficiente para enfrentarmos toda a oposição, perseguição e sofrimento que viermos a experimentar enquanto estivermos aqui”. Além disso, Paulo afirmou que o Senhor lhe disse que “o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Coríntios 12.9).
Obviamente que a “fraqueza” mencionada por Paulo nesse contexto deve ser compreendida em consonância com o restante da sua exposição sobre o assunto. Ele está falando sobre o fato de não sermos super-homens e estarmos subjugados aos sofrimentos que este mundo e seus dominadores ainda conseguem causar em nós. Todavia, sofrimentos e tribulações que experimentamos em uma sociedade hostil ao Evangelho, produzem para nós um eterno peso de glória, acima de toda comparação. Exatamente por isso Paulo conclui o assunto dizendo que “por esta razão sente prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por causa do seu amor a Cristo” (2Coríntios 12.10). Injúrias, perseguições, angústias e necessidades. Estas são as coisas que Paulo cita para caracterizar a fraqueza que ele experimenta diante de um mundo hostil e tão entregue ao mal. Paulo reconhece sua incapacidade de mudar a situação. Reconhece sua pequenez e sua fraqueza diante de um mundo perverso e mal, mas, em contrapartida, ao mesmo tempo, ele se alegra por saber que este tipo de sofrimento o fortalece espiritualmente, pois, pela graça de Deus, tais sofrimentos e perseguições aprimoravam o poder de Deus em sua vida (2Coríntios 12.9,10).
Teólogos e doutores insistem em afirmar que Paulo estava insinuando que era doente, ou que estava sob o jugo de situações desmoralizantes e paralisantes que Satanás havia colocado sobre ele. Porém, em nenhum momento Paulo disse que era “fisicamente fraco”, como se possuísse algum tipo de debilidade física ou enfermidade. Em nenhum momento Paulo incluiu a doença ou a enfermidade na sua lista particular de “fraquezas” que o deixavam mais forte. Embora Paulo tenha deixado Trófimo doente em Mileto (2Timóteo 4.20) e recomendado a Timóteo que se cuidasse melhor por causa das suas frequentes enfermidades (1Timóteo 5.23), em nenhum momento Paulo deu a entender que ele mesmo sofria de alguma doença ou enfermidade “para a glória de Deus”.
Alguns daqueles que seguem essa linha da teologia da justificativa do fracasso, gostam de citar certas versões de Gálatas 4, com o objetivo de “confirmar” a interpretação de que Paulo era um homem doente, e, que, o “espinho na carne”, que ele havia mencionado, se tratava de uma “enfermidade física” .
Gálatas 4.13-14
13 E vós sabeis que vos preguei o evangelho a primeira vez por causa de uma enfermidade física. 14 E, posto que a minha enfermidade na carne vos foi uma tentação, contudo, não me revelastes desprezo nem desgosto; antes, me recebestes como anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus.
As versões da Bíblia apresentam estes versículos de forma muito variada e não tenho o interesse de ficar citando aqui cada pequeno detalhe de cada uma das versões que parecem ser as mais relevantes. O fato é que algumas versões traduzem a palavra ἀσθένεια (astheneia) como “doença” ou “enfermidade” e outras traduzem como “fraqueza”. A palavra grega parece conter ambos significados e apenas o contexto pode definir qual escolha de sentido deve ser feita. Dependendo do contexto a palavra poderia ser usada para se referir a uma fraqueza física, uma fraqueza moral ou espiritual, ou ainda, no sentido de enfermidade física.
No caso particular do texto de Gálatas, é possível que Paulo estivesse fazendo referência a alguma condição física que ele houvesse adquirido em sua primeira viagem missionária à região da Galácia, pois ele mesmo menciona isso. Segundo a versão acima, Paulo estaria dizendo que tinha pregado o Evangelho a primeira vez às igrejas da Galácia, “POR CAUSA de uma enfermidade” e não apenas “com uma enfermidade”, como algumas outras versões sugerem. Sou tendencioso a pensar que esta seja a melhor forma de construir esse texto, pois o relato da primeira vez que Paulo foi à região da Galácia, que se encontra no livro de Atos, parece corroborar com essa interpretação. Observe o texto abaixo.
Atos 14.19-22
19 Sobrevieram, porém, judeus de Antioquia e Icônio e, instigando as multidões e APEDREJANDO a Paulo, ARRASTARAM-NO para fora da cidade, DANDO-O POR MORTO. 20 RODEANDO-O, PORÉM, OS DISCÍPULOS, LEVANTOU-SE e entrou na cidade. No dia seguinte, partiu, com Barnabé, para Derbe. 21 E, tendo anunciado o evangelho naquela cidade e feito muitos discípulos, voltaram para Listra, e Icônio, e Antioquia, 22 fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé; e MOSTRANDO QUE, ATRAVÉS DE MUITAS TRIBULAÇÕES, nos importa entrar no reino de Deus.
O trecho acima é a parte que nos interessa sobre a primeira vez que Paulo pregou o Evangelho na região da Galácia. Observe que o texto diz que Paulo retornou às cidades de Derbe, Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia, por onde já havia passado nesta mesma viagem, para “lhes mostrar” que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus. Ora, o que Paulo foi mostrar para eles, afinal? Não há dúvidas de que ele tinha marcas em sua carne que evidenciavam as tribulações que ele estava experimentando por acusa da sua fé em Cristo. O texto diz que Paulo foi apedrejado até à morte! As pedras que foram usadas neste apedrejamento, não eram pedrinhas que poderiam ser seguradas com dois dedos, eram pedras suficientemente grandes para matar um homem. Seus adversários o apedrejaram até que acreditavam que tinha conseguido matá-lo. Depois, arrastaram e desovaram o seu corpo fora da cidade. Porém, diz o texto, os discípulos o rodearam, e, certamente, ali mesmo, oraram sobre ele, e assim, Paulo se levantou sobre seus pés! Inclusive, alguns acreditam que pode ter sido nesta ocasião que Paulo teria sido levado ao terceiro céu, como ele vai relatar posteriormente em 2Coríntios 12.
As próprias Escrituras Sagradas nos conduzem à compreensão mais acertada do que Paulo quis dizer quando escreveu aos Gálatas e mencionou parcialmente este episódio que acabamos de ler no livro de Atos. Paulo deve ter ficado com o corpo dilacerado, com feridas, pus e uma aparência deplorável. Faz todo sentido Paulo relembrar aos irmãos da Galácia de que ele lhes pregou o Evangelho a primeira vez usando esta debilidade física como uma espécie de demonstração de perseverança para herdar o reino, mesmo em meio a muitas tribulações.
Em Gálatas 4.13, na versão CNBB, Paulo relembra aos Gálatas: “Bem sabeis que foi uma debilidade física que me deu ocasião de vos anunciar o evangelho, a primeira vez”. “No entanto”, Paulo continua, “ainda que minha condição física lhes fosse uma provação, vocês não me rejeitaram nem me mandaram embora” (Nova Bíblia Viva). Provavelmente esta seja a melhor interpretação do que Paulo quis dizer quando falou sobre “sua fraqueza na carne” em Gálatas 4.
A despeito da situação pela qual você esteja passando, as Escrituras afirmam que “o Espírito nos ajuda em nossas fraquezas, porque, em certas situações, não sabemos nem orar como convém, mas, graças a Deus, o próprio Espírito intercede por nós, com gemidos inexprimíveis” (Romanos 8.26). Lembre-se também que muitos, “pela fé, da fraqueza, tiraram força” (Hebreus 13.34).
Não desista! E não aceite que textos bíblicos sejam usados para confirmar uma suposta determinação divina que justifique alguma desgraça na sua vida.
3 Comentários
Fiquei impactada e multipliquei tal conhecimento, agora faz sentido o caráter do Senhor com esta analogia! Glórias a Deus! Deus continue dando sabedoria do Alto. Abs
Se não fosse vc Natan, não teria esse entendimento! Obrigado! Que nosso Pai Celestial continue lhe dando sabedoria
Maravilha de ensino. Deus continue te abençoando irmão Natan. 🙌