
Autórafos, Pseudoepígrafos e Apócrifos na era Patrística
PERGUNTA
Oi, Natan! Pode me tirar uma dúvida? Eu pesquisei um pouco sobre, e dizem que esses escritos não são exatamente obras de Clemente de roma. É isso mesmo? Pelo que vi, dizem que são obras atribuídas falsamente a ele.
RESPOSTA:
Sim, essa é uma questão mais técnica da área da crítica textual, mas para resumir, atualmente entre os estudiosos do assunto, parece haver um concenso de que nem todos os textos atribuídos a Clemente sejam realmente dele.
As conclusões a respeito de que texto realmente pertence ou não pertence a tal pessoa, e qual teria sido o texto realmente escrito por alguém, é um processo que em alguns casos levou anos para se consolidarem. Esses estudos fazem parte daquilo que é conhecido como “Crítica Textual”, ciência pela qual se pretende definir o suposto ou possível texto original de obras antigas, basicamente todas as obras escritas e publicadas em época anterior à invenção da imprensa. Envolve diversos aspectos diferentes que se somam para o objetivo de descobrir o possível texto original da obra e suas possíveis variações. O texto autoral, normalmente chamado de “autógrafo” seria aquele texto original inicialmente escrito por seu autor, que seria replicado em diversas cópias por escribas e copistas ao longo dos anos seguintes. As divergências textuais existentes entre uma cópia e outra, são comumente chamadas de “variantes textuais”. Pouco tempo depois da invenção da imprensa o próprio Novo Testamento começou a ser escrutinado nesse sentido através das diversas cópias disponíveis na época. Estima-se que tenhamos atualmente mais de 4.800 manuscritos do Novo Testamento com cerca de 400.000 variantes textuais. Numa época em que não havia o tipo de tecnologia que temos hoje e todo e qualquer texto tinha que ser produzido à mão, não é difícil de imaginar como as replicações de tais documentos sofriam alterações com mais facilidade do que nos dias de hoje. Havia alterações acidentais, simples consequências do trabalho humano, e havia alterações intencionais, algumas delas, inclusive, supostamente “bem intencionadas”, cujo objetivo visava “salvaguardar alguma doutrina” considerada importante para alguns grupos cristãos.
O apóstolo João, ao escrever o livro de Apocalipse, conhecedor dos costumes e da cultura do seu tempo, fez um alerta de que não queria que ninguém alterasse seu texto. João reprovou tanto a exclusão, quanto o acréscimo do texto que por ele estava sendo escrito.
- Apocalipse 22:18:
“Eu, João, declaro a todos os que ouvem as palavras desta profecia: Se alguém lhes acrescentar algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro.” - Apocalipse 22:19:
“E, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, que estão descritas neste livro.”
No entanto, também havia aqueles que atribuíam a autoria de certos textos a personalidades famosas para imprimir algum tipo de autoridade ao documento. Pessoas má intecionadas sempre existiram, inclusive nas próprias comunidades cristãs, e algumas dessas pessoas escreviam textos falsificados com o objetivo de enganar os que viessem a ler tais documentos. Em Segunda Tessalonicenses Paulo parece mencionar uma carta que alegavam ter sido escrita por ele, uma possível falsificação, cujo conteúdo tinha o objetivo de afirmar que “Paulo estaria dizendo que a Tribulação estava començando. Uma carta com estas características seria considerada como “apócrifa”, ou seja, um texto que deveria ser rejeitado quanto ao seu valor teológico.
Na crítica textual também existem as alterações que são chamadas de interpolações, que se referem à inserção em determinado texto de material que não pertence à sua versão original. Diversas obras daquela época chegaram a sofrer algum tipo de interpolação, inclusive o próprio texto do Novo Testamento. Além disso, alguns textos cuja autoria se tornou incerta, duvidosa ou improvável, foram considerados como “pseudoepígrafos”. Embora a palavra grega pseudo signifique “falso”, o uso da palavra na crítica textual é empregada como um termo técnico, carregando uma nuance diferenciada. Isso quer dizer que um texto chamado de “pseudo Clemente”, por exemplo, não significa que houve falsificação flagrante com a intenção consciente de enganar ou ludibriar os outros. Muitas vezes o termo é aplicado quando um texto é atribuído a uma figura conhecida, mas os estudiosos consideram que a autoria real é duvidosa ou desconhecida. Frequentemente a utilização do termo serve para indicar que a tradição atribuiu o texto àquele autor específico, mas análises internas relacionadas a questões linguísticas, históricas e teológicas parecem apontar em outra direção, ou, para outra possibilidade. Desta forma, o “pseudo” é comumente usado para se referir à ignorância quanto ao verdadeiro autor, sem necessariamente empregar qualquer julgamento moral quanto ao seu conteúdo. Sua utilização na crítica textual é predominantemente técnico e neutro, usado para indicar incerteza ou atribuição tradicional incorreta da autoria. Somente em contextos específicos, quando há evidências claras de intenção de enganar, pode-se falar em falsificação deliberada, mas isso não é o sentido predominante do termo.
Tentar entender o porquê que a tradição atribuiu certos textos a certas pessoas é difícil de se dizer. Um ensinamento qualquer defendido no segundo século, por exemplo, poderia ter sido mantido através de uma tradição oral, e um século depois, algumas partes daquele ensinamento poderiam ser transcritas para o papel e mescladas com alguns outros tópicos da ocasião, e mesmo assim sua autoria ser atribuída ao suposto cristão que inicialmente houvera ensinado aquilo em viva voz em sua época, quando ainda estivera vivo. Sem documentos que revelem claramente o porquê a tradição cristã atribuiu tais textos a certas personalidades, nossos esforços não passarão de especulação, pois não temos a informação completa dos acontecimentos da época.
Por outro lado, embora em alguns casos a datação do documento tenha que sofrer alguma alteração, pois teria sido realmente escrito algum tempo depois da morte do “pseudo autor”, o documento continua sendo importante por seu valor histórico e muitas vezes também por seu teor teológico. Além disso, é importante saber que os estudiosos da área podem mudar de opinião à medida que novos elementos e variáveis sejam acrescentados ao debate. Até recentemente, por exemplo, acreditva-se que as duas cartas de Clemente à igreja de Corinto eram ambas autênticas. Hoje, todavia, apenas a primeira carta mantém o mesmo status. Isso não significa, porém, que a segunda carta não tenha sua importância histórica e teológica para revelar detalhes da época em que ela fora escrita, independente de quem tenha sido o verdadeiro autor que segurou a pena.
A Primeira Epístola de Clemente foi provavelmente escrita no final do século I d.C., e sua datação mais comum sendo por volta de 96 d.C., durante o reinado do imperador Domiciano. Essa carta é considerada a mais antiga epístola cristã existente fora dos livros do Novo Testamento. Embora a carta tenha sido escrita antes da enorme profusão do Gnosticismo e não trate diretamente de qualquer doutrina especificamente gnóstica, seu texto é permeado de alusões à responsabilidade humana e ao livre-arbítrio.
Sua Primeira Epístola aos irmãos de Corinto não trata de forma explícita e sistemática do conceito de livre-arbítrio, como farão escritores cristãos posteriores como Justino, Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Hipólito de Roma, Orígenes, Arquelau, Novaciano, Lactâncio, Eusébio de Cesareia, Metódio e Efraim. No entanto, a carta pressupõe que os cristãos são responsáveis por suas ações, podendo escolher entre obedecer ou não aos mandamentos de Deus. Clemente exorta os coríntios à conversão, ao arrependimento e à obediência voluntária, indicando que os membros da comunidade são livres para agir corretamente ou não. Quando Clemente conclama os irmãos a “obedecerem à vontade excelsa e gloriosa de Deus” e que “recorram à sua misericórdia”, o que se pressupõe é a capacidade de escolha e a responsabilidade moral. A carta enfatiza a necessidade de conversão e mudança de conduta, sugerindo que o ser humano pode optar pelo arrependimento e pelo cumprimento dos preceitos cristãos. Essas exortações indicam uma visão positiva da liberdade humana diante da vontade divina, embora não exista uma discussão aprofundada sobre o livre-arbítrio como aparecerá contundentemente em escritos cristãos posteriores, como já mencionado.
No caso dos documentos considerados pseudoepígrafos atribuídos a Clemente, pelo menos dois deles tratam especificamente contra algumas das ideias defendidas no Gnosticismo, como a ideia gnóstica de que o homem não teria autonomia e não seria possuidor de livre-arbítrio como defendiam os cristãos. As obras são: as “Homilias” e os “Reconhecimentos”. Porém, o fato curioso a respeito destas obras é que, a despeito de não serem reconhecidas como tendo sido escritas por Clemente, o conteúdo do documento, em todos os pormenores argumentativos em favor do livre-arbítrio, é impressionamente igual a todos os outros textos reconhecidamente autênticos da patrística. Mesmo que o texto não tenha sido escrito por ele e se o ensino original que por fim acabou sendo registrado ali não fora originalmente ensinado por Clemente, uma coisa é certa: alguém muito inteligente e sensivelmente conectado à ortodoxia da igreja quanto ao livre-arbítrio, passou para o papel em sua época aquilo que continuaria sendo defendido por centenas de anos até a futura interferência definitiva do Gnosticismo na comunidade cristã por volta do quinto século.

Te aconselho a estudar calmamente o contéudo das páginas 85 a 166 do meu livro “As Origens Gnósticas do Calvinismo”. Lá, eu trato em detalhes sobre esse assunto e exploro diversos registros da patrística considerados “autênticos” relacionados ao tema do Livre-Arbítrio. Se por acaso você ainda não tiver o livro, você pode comprá-lo aqui: https://Loja.NatanRufino.com.