Gogue, Rússia e as Interpretações de Ezequiel 38
Recentemente uma amiga querida me perguntou sobre movimentos geopolíticos da atualidade. O ponto em questão dizia respeito ao que estimado pregador, mundialmente conhecido, afirmava em uma de suas publicações.
Ao fazer considerações sobre movimentos políticos realizados pelo atual governo russo, o querido pregador afirmou que, tais acontecimentos, apontavam para o cumprimento das profecias de Ezequiel 38 e 39. Para quem não está familiarizado com o assunto, o texto é comumente interpretado, por boa parte da comunidade cristã, como uma profecia a respeito de uma suposta futura invasão da Rússia à terra de Israel. Possivelmente a interpretação original dessa linha de pensamento tenha florescido com base em alguns fatores.
- Questões culturais, e, talvez, preconceituosas;
- Questões linguísticas, envolvendo possíveis erros de tradução;
- Questões teológicas que devem ter seguido ideias preconcebidas.
Primeiro, o forte conflito cultural, político e militar, que se manteve por anos, entre as grandes potências que estiveram envolvidas naquilo que foi chamado de Guerra Fria, entre os anos 1947 e 1991. Dessa forma, a Rússia passou a ser demonizada pelos intelectuais americanos e por boa parte dos eruditos cristãos dos Estados Unidos e de outros países aliados.
Segundo, talvez sob forte influência da primeira condição, muitos passaram a acreditar que a palavra hebraica “rosh” (ראש), que aparece no texto de Ezequiel 38.2, seria uma menção à “Rússia”. Embora algumas versões tenham optado por traduzir a palavra “rosh” como “Rôs”, talvez para dar a ideia de “local” ou “nação”, esta é, na verdade, uma palavra hebraica muito comum, que é usada centenas de vezes nas Escrituras do Antigo Testamento. A palavra é comumente traduzida por “chefe”, “cabeça”, “fonte”, “líder”, etc. Um bom exemplo se encontra na expressão “Rosh Hashanah” que marca o início do Ano Novo judeu. É considerado o “dia mais santo”, por ser o primeiro dia santo do ano. Significa literalmente “cabeça do ano” ou “início do ano”. Outro exemplo comum de utilização da palavra “rosh” está na designação de certa classe de sacerdotes. Em Israel há sacerdotes e sumo sacerdotes. Pelo menos duas palavras hebraicas são usadas juntamente com a palavra sacerdote (“cohen”, כֹּהֵן) para a construção da frase “sumo sacerdote”, uma delas é “gadol” e a outra é “rosh”. Você encontra as duas expressões se referindo ao sacerdócio supremo, “Cohen Gadol” (Levítico 21.10, כֹּהֵן הַגָּדֹול) e “Cohen Rosh” (2Reis 25.18, כֹּהֵן הָרֹאשׁ). Neste caso, a palavra “rosh” é usada para dar a ideia de “sacerdote chefe” ou “principal sacerdote” (2 Crônicas 19.11, Esdras 7.5, etc.). De fato, a palavra “rosh” aparece 39 vezes no livro de Ezequiel e é traduzida em nossas Bíblias por “cabeça” em Ezequiel 1.22 e 5.1; por “cimo” ou “cume” em Ezequiel 6.13; por “os mais finos” ou “os mais refinados” em Ezequiel 27.22 e por “princípio” em Ezequiel 40.1. Assim, tudo indica que, em vez de “príncipe de Rôs” (Almeida Revista e Atualizada), a melhor tradução da expressão onde aparece a palavra “rosh”, em Ezequiel 38.2, seria “príncipe e chefe”, como sugere a versão Almeida Corrigida Fiel. Outros editores de Bíblia devem ter considerado com mais atenção o significado da palavra, e, consequentemente, outras possibilidades melhores que a Revista e Atualizada, foram utilizadas em versões diferentes. Observe abaixo.
“Príncipe-chefe de Meseque e Tubal” (Bíblia Livre);
“Príncipe maior de Meseque e de Tubalr” (NVI, King James Atualizada);
“Príncipe supremo de Mosoc e Tubal” (CNBB);
“Chefe e cabeça de Mosoc e Tubal” (Edição Pastoral);
“Príncipe e cabeça de Mosoc e Tubal” (Bíblia de Jerusalém);
“Ppríncipe soberano de Méchec (Mosoc) e Tubal” (Difusora, Bíblia Ave Maria);
Ezequiel, provavelmente, estava falando sobre um príncipe que seria o líder de outros príncipes da mesma região de onde ele virá. Não por acaso, este príncipe, cujo nome é Gogue, virá com seus aliados da terra de “MaGogue”, que, numa tradução livre, significaria algo como “Terra de Gogue” ou “Pertencentes à Gogue”.
Alguns ainda argumentam que o texto deve mesmo estar falando da Rússia, pois Ezequiel diz que aquele príncipe virá “dos lados do norte” ou “do extremo norte”, como dizem algumas versões (Ezequiel 28.6,15 e Ezequiel 39.2). No entanto, seria perigoso interpretar terminologias ou referências bíblicas, principalmente de épocas tão longínquas quanto estas, forçando-as a se adequarem à realidade geográfica do mundo do século XXI. Para Ezequiel, “o extremo norte” se encontrava na Anatólia ou Ásia Menor. Esse era o limite norte do seu ponto de vista. Aquele era o “extremo norte” da terra habitada do seu tempo. Se a Ásia Menor não deve ser considerada o “extremo norte” do texto de Ezequiel, então por que parar na Rússia? Por que não seguir em frente até o Polo Norte? Por que não Finlândia? Noruega? Suécia? Todos estes lugares se encontram diretamente acima de Moscou e estão “mais ao norte” do que a própria Rússia. Se aqueles intérpretes bíblicos não pretendem se limitar à perspectiva geográfica da época de Ezequiel, pois a suposta compreensão “mais literal” para a expressão “extremo norte” exige que eles interpretem assim, então, seguindo a mesma lógica hermenêutica, eles deveriam ir mais longe do que Moscou.
É interessante observar também que, em Ezequiel 38.6, a mesma descrição geográfica “lado do norte” ou “extremo norte”, é usada para Togarma, cuja localização é virtualmente aceita por todos os estudiosos como sendo na região leste da Ásia Menor. Então, se a região da Ásia Menor foi considera suficientemente “ao norte” para Togarma, por que não considerá-la suficientemente ao norte para Gogue?
Terceiro e último fator, que pode ter contribuído para a interpretação de que Gogue seria uma referência à Rússia, baseia-se no raciocínio de que o Anticristo virá da Europa. Por causa disso, passagens como Ezequiel 38 e 39, que falam sobre um futuro inimigo de Israel, vindo dos lados do norte, “não poderia estar falando do Anticristo”, devem ter pensado alguns.
No entanto, praticamente todos os textos que falam sobre o futuro ataque do Anticristo à terra de Israel, mencionam que ele virá da região ao norte da terra dos hebreus (Isaías 7.17-20, Isaías 8.7,8, Isaías 10.12, Miquéias 5.2-6, Daniel 11, etc). As indicações apontam para a mesma Ásia Menor da época de Gogue, onde atualmente se encontra a Turquia. A mesma terra, porém, já esteve sob o domínio do antigo Império Assírio, do Império Babilônico, do Império Medo-Persa, do Império Selêucida, do Império Romano e do Império Islâmico. Embora a última dinastia dominante do Império Islâmico tenha tombado em 1924 com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Turquia, antiga capital imperial do Sultão e Califa do Império Otomano, persiste como um dos mais importantes centros políticos e estratégicos dentro da irmandade islâmica mundial.
Essa mesma região ao norte de Israel, juntamente com outras partes da Síria, Irã, Iraque, Líbano, etc., sempre se uniram para atacar os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó. Embora os povos destas nações nunca tenham sido realmente unidos, eles sempre se aliançaram para atacar Israel, que sempre foi considerado como um inimigo em comum. Isso não deveria parecer uma novidade para o leitor da Bíblia. Afinal, estes povos ao redor de Israel, sempre foram os “eternos” inimigos dos judeus. Penso que as Escrituras nos dão indicações suficientes para que possamos considerar que, os “árabes”, como é genericamente chamada grande parte dos descendentes de Ismael e Esaú, serão a última ameaça contra o povo judeu na história das profecias bíblicas.
Possivelmente, por acreditarem que o Anticristo seria um italiano, ou algum europeu influente, alguns intérpretes passaram a tratar o texto de Ezequiel 38 e 39 como uma referência a algum suposto inimigo que precederia o Anticristo. Uma vez que o texto de Ezequiel não fala sobre qualquer inimigo vindo da “região da Itália” ou da Europa, foi preciso elaborar uma teoria que justificasse este futuro ataque ainda não cumprido na história.
A publicação do renomado pregador em questão, que mencionei no início deste texto, fazia menção às atuais movimentações da Rússia como uma real possibilidade do cumprimento de Ezequiel 38 e 39. Como já foi dito, essa interpretação baseia-se na ideia de que Gogue, de Ezequiel 38 e 39, seria uma espécie de inimigo de Israel que surgiria no mundo e atacaria Israel antes do surgimento do Anticristo. Normalmente, os que seguem essa linha de raciocínio, acreditam que, Gogue, da terra de Magogue, seja mesmo uma referência à Rússia. Porém, quando você considera o texto sem a influência dos sistemas teológicos que as pessoas abraçam, o texto parece estar falando sobre o próprio Anticristo. Há diversas razões para se entender o texto assim, mas, para concluir o assunto, vou relatar pelo menos três razões básicas:
1. Em Ezequiel 38.17 está escrito: “Assim diz o SENHOR Deus: Não és tu aquele de quem eu disse nos dias antigos, por intermédio dos meus servos, os profetas de Israel, os quais, então, profetizaram, durante anos, que te faria vir contra eles?”
Veja que esse personagem, representado na pessoa de Gogue, “é o mesmo de quem Deus havia falado por intermédio de outros profetas”. A questão é que NÃO HÁ qualquer outra suposta profecia falando de “uma futura invasão russa à terra de Israel”. Em lugar nenhum. Por outro lado, temos inúmeras outras profecias falando do Anticristo atacando Israel no tempo do fim. Inclusive Jesus, Paulo e João, repetiram isso no Novo Testamento. Jesus disse “quando virdes o abominável da desolação do qual falou o profeta Daniel, no lugar santo, quem estiver na Judeia, fuja…”. Paulo disse que ele “se assentará no santuário” (o templo judeu que será construído no Monte Moriá, em Israel) e João falou bastante coisa no livro de Apocalipse sobre “a Besta destroçando Jerusalém e o povo judeu”. Se o inimigo de Ezequiel 38 e 39 é o mesmo inimigo de quem os outros profetas falaram, devemos harmonizar todos estes textos para conhecermos sua verdadeira identidade. É mais provável que Ezequiel esteja falando do mesmo Anticristo que os outros profetas, do que os outros profetas estarem falando de algum suposto mesmo ataque russo contra Israel.
2. Em Ezequiel 39.7 está escrito: “Farei conhecido o meu santo nome no meio do meu povo de Israel e nunca mais deixarei profanar o meu santo nome; e as nações saberão que eu sou o SENHOR, o Santo em Israel.
No texto acima, encontramos duas coisas muito importantes: Primeiro, Deus prometeu que depois que Gogue fosse eliminado, ele jamais deixaria que seu nome fosse blasfemado novamente. Ora, se, depois de Gogue, “ainda vem o Anticristo”, como pensam alguns, incluindo o renomado pregador do texto em questão, então, Deus não deveria ter dito o que está em Ezequiel 39.7. Afinal, as Escrituras ensinam que o Anticristo será um dos maiores blasfemadores de todos tempos (Dn 7.8,Dn 7.20, 1João 2.22). Daniel 7.25 diz que ele “proferirá palavras contra o Altíssimo”. A única interpretação de Ezequiel 39.7, que faz algum sentido, é que Gogue seja uma referência ao próprio Anticristo. Em segundo lugar, nesse mesmo versículo, Ez 39.7, está escrito que “as nações saberão que o Senhor é o Santo em Israel”. Esse é o único lugar em toda a Bíblia que essa frase aparece. Há frases parecidas, como “o Santo DE Israel”, mas, “Santo EM Israel”, só aí. Isso parece ser uma alusão profética à vinda de Cristo, pois, quando ele vier, descer à terra e por seus pés no Monte das Oliveiras, ele “matará o Anticristo com o sopro da sua boca”. Isso reforça a ideia de que Gogue seja mais uma representação profética do próprio Anticristo. O texto de Ezequiel parece estar apenas afirmando que quando o Senhor vier, ele eliminará o Anticristo, encerrando a grande blasfêmia, e, consequentemente, se tornará conhecido pelas nações da terra, pois ele estará presencialmente “em Israel”.
3. Em Ezequiel 39.4 está escrito que “Nos montes de Israel, cairás, tu, e todas as tuas tropas, e os povos que estão contigo; a toda espécie de aves de rapina e aos animais do campo eu te darei, para que te devorem”.
A imagem oferecida pelo texto, de “aves e animais devorando Gogue e seus exércitos”, é muito semelhante ao que foi dito por João, em Apocalipse, quando este descreveu o que vai acontecer às tropas do Anticristo quando Jesus vier. Observe: “11 Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça. 17 Então, vi um anjo posto em pé no sol, e clamou com grande voz, falando a todas as aves que voam pelo meio do céu: Vinde, reuni-vos para a grande ceia de Deus, 18 para que comais carnes de reis, carnes de comandantes, carnes de poderosos, carnes de cavalos e seus cavaleiros, carnes de todos, quer livres, quer escravos, tanto pequenos como grandes” (Apocalipse 19.11.17,18).
Minha intenção ao escrever este texto não é apresentar qualquer tipo de posicionamento político em relação à Rússia. Também não acredito que haja menção a esta grande nação no texto de Ezequiel 38 e 39. Na verdade, penso que o texto de Ezequiel é apenas mais outro texto profético falando do mesmo personagem de sempre, o Anticristo. “Gogue”, “o Assírio”, “o Chifre Pequeno”, “o Rei do Norte”, “o Iníquo”, são apenas alguns dos termos pelos quais ele tem sido chamado no texto bíblico.