Fui constituído pecador quando ainda estava na barriga da minha

Fui constituído pecador quando ainda estava na barriga da minha mãe?
Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.
Salmo 51.5
Normalmente textos semelhantes a este são usados para se justificar a ideia de que um bebê recém-nascido já nasce corrompido e depravado, podendo assim ser considerado pecador e culpado de pecados que sequer teve ainda a chance de os cometer. Homens de mente pervertida como Agostinho, chegaram a dizer que os bebês, por estarem supostamente nesta condição, precisavam ser batizados antes de morrerem, pois se morressem assim, “em pecado”, iriam direto para o inferno sofrer a condenação de Deus numa espécie de “inferno kids”, o tal do “limbus infantum”. Nada poderia estar mais longe da verdade. Quem quiser seguir a lógica imunda de Agostinho que siga, eu ficarei com as palavras de Jesus que afirmou que “às crianças pertence o reino dos céus”. Paulo também parecia ser da mesma opinião, pois escrevendo à igreja disse que os irmãos deveriam “ser como as crianças em relação à malícia” (1 Co 14.20), pois, todos deveriam saber que as crianças não têm malícia, a despeito das suas inclinações carnais instintivas. A criança pensa, sente e age de forma totalmente diferente dos adultos, e a característica essencial da criança é exatamente a pureza e a inocência (1 Co 13.11). Um homem que acredita que uma criança já está depravada e condenada, indo em toda velocidade para o inferno se ninguém a detiver “através do batismo”, só pode ter uma mente muito depravada. Como alguém poderia aplaudir a preletores que ousam afirmar que “bebês recém-nascidos são a manifestação visível dos demônios invisíveis”?
Alguém poderia perguntar, “Textos como este e o Salmo 14, e o Salmo 58 não estão afirmando que o bebê nasce totalmente corrompido e depravado, e por isso condenado ao inferno? A resposta curta seria: Jamais! Isso estaria em direta contradição ao restante de toda a Palavra de Deus.
O problema é que as pessoas não leem o texto exatamente como está escrito e sempre acrescentam sentido estranho ao contexto da passagem. Veja alguns exemplos:
1 Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem. 2 Do céu olha o SENHOR para os seres humanos, para ver se há quem entenda, se há quem busque a Deus. 3 Todos se extraviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há nem um sequer.
SALMO 14
O texto acima afirma que os homens já nasceram depravados, espiritualmente imundos e por isso destinados ao inferno? Não, muito pelo contrário! O salmista disse que os homens “se extraviaram e se corromperam”.
Não tem como se dizer isso de um ímpio se em dado momento da sua vida ele não esteve em uma condição oposta à impiedade na qual se encontra hoje. Se o homem hoje é chamado de “corrompido” e de “ímpio”, e o texto está dizendo que ele “se extraviou”, o que significa senão que ele precisou perder um estado de pureza e inocência para poder ser classificado assim, correto? Não se corrompe o que já está degradado, não se corrompe aquilo que não presta. Seria possível se dizer de algo invariavelmente impuro que aquilo “se corrompeu”? Se o ser humano sempre foi sujo e impuro desde o nascimento, ele jamais poderia ter sido “corrompido”. O problema não está no texto, mas na cabeça de quem lê.
Da mesma forma fazem com o Salmo 58, que fora escrito numa espécie de homenagem à condição atual da suprema corte brasileira.
1 O que vocês falam é verdadeiramente justo, ó juízes? Vocês julgam com retidão as pessoas? 2 Longe disso! Pleo contrário! No íntimo engendrais iniquidades e distribuís na terra a violência de vossas mãos. 3 Desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras.
SALMO 58
A exemplo do que fazem com outros textos semelhantes, este também é apenas mais um texto bíblico pessimamente interpretado pelos irmãos. Ora, se homens de quem o salmo fala são chamados de “ímpios” e diz que eles são assim porque “SE DESVIARAM” e “SE DESENCAMINHARAM”, é porque não nasceram assim! Nem mesmo homens como Alexandre de Moraes nasceram na condição espiritual e emocional na qual se encontram atualmente.
Nenhum ser humano nasce com qualquer condição previamente estabelecida pelos astros, pelos deuses ou por qualquer ser cósmico e dominador das desgraças dos homens. Nenhum demônio poderia predeterminar que os homens já nascessem condenados ou predestinados ao inferno, pois Deus, o verdadeiro pai dos espíritos (Hb 12.9) fez o homem à sua imagem e semelhança e afirmou que tudo relacionado à sua criação era muito bom! O testemunho bíblico é de que “Deus fez toda a raça humana a partir de um só homem para buscar a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, e ele não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, nos movemos e existimos. Como diriam os poetas atenienses: fomos todos gerados por Deus” (At 17.26-28). Se os homens buscarem a Deus, o encontrarão! Tudo o que se pode conhecer de Deus está manifestao aos homens, porque foi o próprio Deus que o manifestou; e Deus fez isso com o exato objetivo de ser achado e compreendido pelos homens, pois os atributos invisíveis de Deus, tanto o seu eterno poder, como a sua própria divindade, claramente se entendem desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas (Rm 1.20).
Nenhum homem nasce mau. Nenhum homem nasce depravado. Como disse o Salmo 58, os homens “se desviam” e “se desencaminham”. O verso três deste Salmo diz: “desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras”. Isso significa que já nascem pecadores e condenados ao fogo do inferno? Claro que não! Eles são chamados de ímpios, mas não nasceram assim. Da concepção para frente, é que foram se desviar para posteriormente poderem ser classificados como “ímpios”. Observe também que o versículo diz que os homens, de quem o salmo fala, são “ímpios” porque “se desviaram” e “se desencaminharam”. Em outras palavras, saíram de uma condição positiva, para o estado negativo no qual se encontram hoje. Ainda assim, muitos se atrapalham com as expressões: “se desviam-se desde a concepção” e “se desencaminham assim que nascem”. Por causa disso alguns têm a ousadia de afirmar que “o ser humano já nasce impuro, depravado e imprestável”. Porém, o texto além de não dizer isso, ainda explica como tais ímpios se desencaminharam na vida: “se desencaminham PROFERINDO MENTIRAS”. Você acha mesmo que o texto está dizendo que um bebê rescém-nascido vem ao mundo às 9h da manhã e às 3h da tarde já estará mentindo aos parentes que vierem lhe visitar? Seria preciso muita deficiência cognitiva para se chegar a essa conclusão, não é mesmo? O texto está simplesmente fazendo uso de recursos de oratória para comunicar um sentimento hiperbólico, intenso, exagerado. A verdadeira intenção no texto é afirmar que os homens se desviam e se desencaminham da inocência e do bem, muito novos, desde cedo, mas não no exato momento em que são concebidos! Se o desencaminhamento mencionado no texto está sendo relacionado ao proferimento de mentiras, isso indica que o desvio em questão acontece quando a criança chega na idade em que isso se torna possível. Ou seja, somente depois que a criança tem idade suficiente para discernir o bem do mal e se torna capaz de praticar o mal de forma consciente, é que este desvio e desencaminhamento vai acontecer!
O Salmo 51 não é diferente. Ele não distoa, nem contradiz, o restante das Escrituras que tratam do mesmo assunto. O problema, mais uma vez, não está no Salmo, mas na cabeça de quem lê.
Neste Salmo, Davi está expressando seus sentimentos a respeito do pecado que ele havia PRATICADO e não sobre uma suposta “condição determinante e indesculpável” na qual ele houvera nascido. Se os pecados mais recentes de Davi, que o levaram a escrever o Salmo em questão, fossem a consequência de uma suposta condição espiritual anterior na qual já havia nascido, ele não precisaria se arrepender ou buscar o perdão de Deus. Se a interpretação popular do Salmo 51 fosse correta, Davi não estaria se arrependendo e cuscando o perdão, e sim se justificando e explicando porque havia pecado. No entanto, não é isso que ele faz, pois, um versículo antes do verso cinco, que usam para dizer que “todos já nascemos maus, depravados e corrompidos”, o salmista reconheceu: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar”. Davi disse claramente que o problema em questão, tratado no conteúdo do Salmo, era o pecado que ele havia PRATICADO. Ele disse: “PEQUEI e FIZ o que é mau”. E na lógica do salmista, POR ISSO, “Deus seria justo ao julgar Davi como culpado”. Como poderia Davi estar buscando perdão através do arrependimento e ao mesmo tempo tentar se justificar pelos seus erros dizendo que ele já havia nascido assim? Não faz o menor sentido!
O mais curioso é que os crentes preferem dizer que Davi “já tinha nascido culpado”, e que “já era pecador mesmo quando era um bebê” do que imaginar que talvez Davi estivesse falando da sua mãe e do contexto no qual nasceu. Ele não estava se justificando, estava apenas acrescentando ao contexto da sua oração que “esteve cercado pelo pecado desde que nasceu”, mas, que isso não seria desculpa para os erros que ele havia pessoalmente cometido, e que, independentemente dos pecados dos seus pais, e do ambiente onde ele havia crescido, ele tinha que prestar constas de seus atos pessoais.
Quando no verso nove Davi diz “esconde o rosto dos meus pecados e apaga todas as minhas iniquidades”, ao que você acha que ele se referia? Ele fazia menção aos pecados que ele carregava desde que nasceu ou estava pensando no que havia cometido mais recentemente? Ele buscava perdão para todas as iniquidades que havia praticado mais recentemente: ficar com Bate-Seba, tentar acorbertar seu erro, trair e enganar Urias, etc. Depois Davi acrescenta no verso doze: “Restitui-me a alegria da tua salvação”. Davi estava simplesmente querendo voltar ao estado de graça no qual se encontrava antes de ter praticado tais atos repulsivos. O foco é sempre seus atos e comportamentos individuais.
Se Davi realmente acreditasse que os bebês já nascessem depravados, corrompidos e culpados de qualquer pecado cometido por um antepassado, fosse ele sua mãe, seu pai ou Adão, ele poderia ter afirmado que a criança que nasceu como fruto do seu pecado com Bate-Seba e que havia morrido, estaria, obviamente, “destinada ao lugar dos condenados”, como defendia Agostinho. No entanto, a declaração de Davi quanto ao destino da criança dá a entender outra coia totalmente diferente, pois ele disse: “Agora que está morta, por que jejuaria eu ainda? Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim” (2 Sm 12.23).
Esta ideia de uma suposta maldição hereditaria que seria passada geneticamente de pai para filho desde os tempos de Adão até o dia de hoje, é uma grande tolice. Obviamente que os corpos vêm dos pais, mas o espírito vem de Deus, pois ele sim, é o verdadeiro pai dos espíritos, e não há espírito nenhum gerado por Deus que já venha com “defeito de fábrica”.
O conceito de “pecado original” na tradição cristã ocidental se transformou nessa ideia de que “o pecado” é transferido para os recém-nascidos através da relação sexual dos pais, como advogavam os maniqueístas e o próprio Agostinho. Os primeiros cristãos, incluindo os chamados “pais da igreja” antes de Agostinho, lidavam com a ideia do pecado original associada à atual fragilidade e vulnerabilidade humana depois da queda, mas não como uma condição transferida sexualmente. Entre os teólogos do Oriente, alguns defenderam que o conceito de “pecado original” estaria associado unicamente à morte física. O fato é que no imaginário popular evangélico ocidental se estabeleceu o conceito de que o primeiro pecado humano, o pecado de Adão, o pecado original, teria sido transferido geneticamente através da relação sexual dos pais de cada nova criança. A Bíblia não ensina isso em lugar nenhum.
O pecado de Adão fez com que Deus punisse a humanidade por meio da interdição do acesso a árvore da Vida, pondo um anjo com uma espada ardente ao seu redor (Gn 3.24). Quando o texto bíblico fala sobre esta situação ao referir-se da queda do homem e da perda da comunhão com Deus, o texto está afirmando que o homem perdeu acesso à vida. A consequência prática disso é que as crianças nascem puras, inocentes e espiritualmente vivas, porém, estão fadadas a crescer neste mundo onde Satanás se tornou deus. E, diferentemente da condição original, as crianças crescem por fora e acabam atrofiando por dentro. Todas as crianças que não morrem prematuramente e crescem neste mundo, acabam chegando a um ponto em que perdem sua sensibilidade, não conseguem resistir ao pecado, e, entrando-se a ele, precisarão, deste dia em diante, nascerem de novo para voltarem para o reino de Deus do qual saíram. A situação é semelhante às condições precárias nas quais se encontram os filhos de pais que foram presos. Os filhos sofrem pelo que os pais fizeram e pela condição limitante na qual se encontram, mas os erros do pai e sua culpa não são jamais transferidos geneticamente ao filho pelo simples fato de este ter nascido daquele.

Meu aconselho é que você estude com atenção das páginas 182 a 206 do meu livro “As Origens Gnósticas do Calvinismo”. Esse texto faz parte do Capítulo 6. Lá, eu trato em detalhes sobre esse assunto e exploro outros textos bíblicos relacionados ao tema. Se por acaso você ainda não tiver o livro, você pode comprá-lo aqui: Loja.NatanRufino.com.