Quinhetas citações da Patristica para provar o Predestinismo?

Quinhetas citações da Patristica para provar o Predestinismo?
Por esses dias alguém viu uma postagem associada às minhas afirmações de que os cristãos antes de Agostinho defendiam exaustivamente o livre arbítrio, e, julgando “provar o contrário”, foi na postagem para “por pra fora” sua angústia, dizendo o seguinte: “Literalmente São Clemente de Roma em sua primeira carta aos coríntios capítulo XXXII disse, Pois Deus Todo poderoso justificou a todos desde sempre”. Após a citação deste texto da patrística, que, na cabeça dele, provava que “o homem não faz nada para sua salvação, pois tudo é decisão unilateral e arbítraria de Deus”, ele acrescentou: “Antes de ouvirem mentiroso gerando provocações ao Cristianismo verdadeiro na intemet, leiam a Patrística! A predestinação é real!”
Bom, aqui vai minha reposta aos que gostariam de saber mais um pouco do mesmo assunto. Paulo ensina, de fato, sobre predestinação, mas não o tipo de predestinação que os gnósticos inventaram e que foi recebida como herança pelos defensores das invencionices teológicas de Agostinho, que, por sua vez, tendo sido gnóstico por dez anos antes de se converter, adaptou e ressignificou o predestinismo gnóstico ao Cristianismo nos anos finais de sua vida, expondo tais ideias principalmente nos seguintes livros : “A Graça e a Liberdade”, “A Correção e a Graça”, “A Predestinação dos Santos” e “O Dom da Perseverança”.
Além disso, afirmar que “Deus justifica a todos desde sempre”, não quer dizer absolutamente nada em favor da ideia predestinista, como o mancebo da mensagem quis dar a entender. De vez em quando aparece alguém que decidiu “escrever um livro para provar o predestinismo antes de Agostinho”. Como eles fazem para construir tal “prova”, se afirmações desse tipo simplesmente não existem? Muito simples: pegam pequenas frases fora de contexto, torcem o sentido original pretendido pelo autor, e voalá! Temos provas!
A ideia de salvação como obra exclusiva de Deus, sem cooperação humana, incluindo predestinação incondicional e graça irresistível, não é encontrada nos Pais antes de Agostinho nascer, antes de 354 d.C. Pelo contrário, a tradição patrística primitiva era sinergista, enfatizando livre-arbítrio e eleição condicional baseada em presciência divina, frequentemente em refutação ao determinismo gnóstico. Calvinistas como John Gill reinterpretaram seletivamente alguns textos da patrística para alegar que havia neles a presença de “monergismo”. Porém, ele se utilizou de textos relativamente ambíguos, mas que, pelo próprio contexto, se provam o contrário daquilo que Gill sugeriu. Posteriormente, Michael Horton usou textos de Gill em uma sua obra “Putting Amazing Back into Grace”. Após a publicação, recebeu inúmeras críticas técnicas sobre o assunto, que, por fim, o levaram a revisar e retirar parte das citações em edições posteriores.
Não se iluda se você encontrar alguém por aí dizendo que “publicou um livro com 500 citações da patrística antes de Agostinho, para provar a salvação como arbitrariedade divina”. Não há nada de novo debaixo do sol. É a mesma coisa de sempre: seleção de texto fora do contexto, pequenas frases soltas, cujas interpretaçoes deterministas são contraditadas, pelo mesmo autor, em lugares difentes, muitas vezes na mesma obra citada.
Aliás, voltando ao texto de Clemente, citado erroneamente e mal interpretado pelo jovem mencionado acima, o texto exato da citação diz o seguinte:
“E nós, também, sendo chamados por sua vontade em Cristo Jesus, não somos justificados por nós mesmos, nem por nossa própria sabedoria, entendimento, piedade ou obras que realizamos com coração santo; mas por aquela fé por meio da qual, desde o início, o Deus Todo-Poderoso justificou todos os homens”.
1ª Clemente 32.4
Clemente está simplesmente afirmando que “todos os homens que um dia já foram justificados, o foram assim, pela fé”. No entanto, sabemos que pessoas que não enxergam além do que querem, conseguiriam ver predestinismo até mesmo em frases como essas, afinal, eles acham isso até na Bíblia, não é mesmo? Porém, é o contexto que mostra o real pensamento do autor. Para quem ainda não entendia isso, é bom começar a levar este fato em consideração.
Vejamos outras partes do mesmo livro de Clemente:
“Os que COM FÉ verdadeira e EM SANTIDADE SE ESTABELECERAM EM CONFIANÇA, COM TODA PIEDADE, foram contados no número dos eleitos salvos pela graça”.
1ª Clemente 2.4
“OLHEMOS FIXAMENTE para o sangue de Cristo e compreendamos quão precioso é para Deus seu Pai, pois, derramado pela nossa salvação, trouxe AO MUNDO INTEIRO A GRAÇA DO ARREPENDIMENTO. […] Em todas as gerações, Deus CONCEDE OPORTUNIDADE DE ARREPENDIMENTO ÀQUELES QUE DESEJAM VOLTAR-SE para Ele”.
1ª Clemente 7.4-7
“Que AQUELE QUE DESEJA isso [o perdão] NÃO SE DEMORE, mas SE ARREPENDA COM TODO O CORAÇÃO, e ASSIM OBTERÁ misericórdia”.
1ª Clemente 8.5
“Abraão, chamado de ‘o amigo’, foi encontrado fiel POR SE TORNAR OBEDIENTE às palavras de Deus. […] POR SUA FÉ E HOSPITALIDADE, uma bênção lhe foi dada”.
1ª Clemente 10.6-7
“POR SUA HOSPITALIDADE E PIEDADE, LÓ FOI SALVO de Sodoma, quando a região ao redor foi julgada pelo fogo e enxofre; ASSIM, O MESTRE DEIXOU CLARO que Ele não abandona AQUELES QUE ESPERAM NELE, mas entrega à punição e ao tormento AQUELES QUE SE DESVIAM”.
1ª Clemente 11.1-2
“Moisés […] disse: ‘Eu não sou eloquente’, mas POR SUA humildade ELE FOI OBEDIENTE À VONTADE DE DEUS”.
1ª Clemente 17.5-6
“EXORTEMO-NOS MUTUAMENTE ao amor e às boas obras, NÃO ABANDONANDO nossa reunião, como é costume de alguns, mas ENCORAJANDO UNS AOS OUTROS […] FUJAMOS das advertências vãs e CHEGUEMOS AO OBJETIVO glorioso e venerável da nossa tradição”.
1ª Clemente 21.6-8
“Visto que somos a porção dos santos, PRATIQUEMOS tudo o que pertence à santidade, FUGINDO da maledicência, das uniões impuras e ilícitas, da embriaguez, das inovações, das paixões más, do adultério detestável e da arrogância abominável […] REVISTAMO-NOS, pois, de concórdia, SENDO humildes, temperantes, afastados de toda murmuração e difamação, JUSTIFICANDO-NOS PELAS OBRAS E NÃO PELAS PALAVRAS”.
1ª Clemente 30.1-3
“Que FAREMOS, pois, irmãos? Seremos preguiçosos em fazer o bem e nos absteremos das boas obras? (…) Antes, APRESSEMO-NOS COM ZELO E FERVOR PARA REALIZAR TODA BOA OBRA”.
1ª Clemente 33.1
“REJEITEMOS, pois, toda vaidade e PREGUIÇA, e SIGAMOS O QUE É BOM, justo e agradável aos olhos de nosso Criador. […] Pois ELE NOS ORDENA que, com toda pressa, NOS AFASTEMOS da injustiça e FAÇAMOS o que é bom.”
1ª Clemente 35.4-5
“QUE NENHUM DE NÓS SEJA encontrado FALTOSO, mas que, com verdadeira fé e amor, SEJAMOS CONTADOS NO NÚMERO DOS QUE SÃO SALVOS”.
1ª Clemente 58.2
Estas e outras passagens de 1ª Clemente destacam a ênfase de Clemente na escolha ativa de se arrepender, obedecer, praticar boas obras e perseverar na fé, refletindo a responsabilidade humana em responder à vontade de Deus.
Se você deseja começar a estudar sobre o assunto, mas não consegue discernir quem está mentindo e quem está falando a verdade, você pode fazer um primeiro teste prático sobre tudo o que tem sido afirmado por aí. Quer começar a pesquisar sobre predestinismo e livre arbítrio na patrística? Acesse a plataforma de IA da sua mais alta confiança, e pergunte o seguinte:
“Existe algum texto cristão da patrística antes de Agostinho combatendo o livre arbítrio e defendendo a salvação por decreto unilateral da parte de Deus?”.
O problema de pessoas como aquele jovem rapaz, é sempre o mesmo. Primeiro, eles tentam ofender os outros apenas porque ficaram sentidos por ouvir coisas que não gostaram. Chamam os que discordam de tudo que é nome que passa na cabeça: Pelagiano, Herético, Mentiroso, etc. Isso só demonstra a fragilidade emocional e despreparo que possuem. Depois, ao recorrerem a documentos históricos que supostamente provam o que querem, eles demonstram em público sua insensatez ao interpretar os textos que elegeram por sua soberania, totalmente fora de seus contextos.
O esforço desesperado por parte de teólogos, pesquisadores e cristãos de forma geral, para tentar mudar o passado, tem sido vergonhoso. De vez em quando aparece alguém querendo repetir a mesma tentativa frustrada de seus antecessores, que buscavam na patrística anterior a Agostinho, a comprovação de que o predestinismo nunca foi uma heresia gnóstica e sim “a doutrina defendida pela Igreja de Cristo”. Quando você encontrar alguém por aí dizendo que “escreveu um livro de mil páginas, com mais de quinhetas citações da patrística antes de Agostinho, que provam a salvação por arbitrariedade divina”, lembre-se, você já sabe o que está acontecendo, pois, não há nada de novo debaixo do sol.
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