“PAI, NAS TUAS MÃOS ENTREGO O MEU ESPÍRITO”
PERGUNTA:
Se o ladrão não foi para o paraíso no dia que morreu, como explicar Lucas 16? A passagem conta de Lázaro que morreu e imediatamente foi para o “paraíso” ou pelo menos foi para um lugar espiritual. Se o ladrão foi para o “paraíso”, Jesus também foi. Não é assim?
RESPOSTA:
Olá amigo, tudo bem? Posso compartilhar com você meu entendimento sobre o assunto? Primeiro, acho que a confusão gira em torno do uso da palavra “paraíso”. Normalmente os irmãos usam a palavra como sinônimo para “Seio de Abraão”, querendo dizer com isso que a palavra se refere ao lugar dos justos após a morte. Entretanto, é importante que se diga que parece haver uma diferença entre a morte dos justos sob a Antiga Aliança e a morte dos justos sob a Nova Aliança. Embora quando Jesus esteve na terra, ele estivesse ministrando debaixo da Antiga Aliança, ele ministrava sob a luz da Nova Aliança que ele mesmo iria estabelecer com seu próprio sangue.
Eu acredito que os justos quando morrem vão para um lugar compatível com a realidade espiritual na qual já viviam antes de deixar o corpo. Acredito que o justo continua vivo e consciente após a morte física. Acredito que continua em comunhão com Deus e junto ao Senhor Jesus onde ele estiver. Todos os textos de Paulo que tratam sobre a morte física demonstram que ele acreditava que, ao deixar o corpo, o crente “estaria com o Senhor”. Onde o Senhor Jesus estiver, ali estará o crente depois da morte. Nos textos do Novo Testamento o “paraíso” é identificado com o “terceiro céu”. Este terceiro céu parece ser o “céu dos céus”, o céu mais alto, onde estaria o trono de Deus. Em 2Co 12.2,4 Paulo diz que o “terceiro céu” é o mesmo “paraíso”.
Alguns teólogos, usando Lucas 16 como base para o conceito, argumentam que o paraíso teria sido embaixo, nas regiões inferiores à própria terra, no mesmo lugar onde ficava o destino dos ímpios, separado apenas por um abismo, e que, quando Jesus ressuscitou, ele teria levado o paraíso para cima, para o local onde se encontra hoje, no terceiro céu. Eu penso muito parecido com tudo isso, a única diferença é que não tenho certeza se realmente Jesus levou “o paraíso” para o céu, ou se ele levou “o cativeiro” para onde o paraíso já estava, ou seja, no terceiro céu.
Embora os justos do Antigo Testamento fossem salvos, eles ainda não tinham nascido de novo. Ainda que tenham obtido bom testemunho por sua fé, eles não chegaram a alcançar a concretização da promessa (Hb 11.39,40). Assim, até então, até a ressurreição de Jesus, eles ainda estavam em relativa desvantagem à situação dos justos mortos da Nova Aliança. Quando Jesus ressuscitou, ele foi feito o primogênito dos mortos, o primogênito entre muitos irmãos. Todos os justos do Antigo Testamento que aguardavam a redenção foram regenerados e conduzidos ao verdadeiro paraíso, no terceiro céu e os justos da Nova Aliança, quando morrem, vão direto para o céu, onde se encontra o Senhor Jesus. Talvez tenha sido a este respeito que o autor da epístola aos hebreus tenha se referido quando citou os “espíritos dos justos aperfeiçoados” juntamente com a “igreja dos primogênitos inscritos no céu” (Hb 12.23). Antes, porém, de tudo isso ser possível, Jesus teria que morrer, ser sepultado, ressuscitar dentre os mortos e subir ao céu, assentando-se à direita da majestade nas alturas.
Este que subiu é o mesmo que desceu até as profundezas, até às regiões inferiores à terra. Jesus desceu do céu à terra, e depois da morte na cruz, ele desceu da terra às regiões ainda mais baixas. Ao morrer na cruz Jesus não subiu direto para o paraíso, ao contrário, ele desceu ainda mais. Em Efésios 4.8-10 Paulo diz que Jesus só subiu depois que tinha descido. O próprio Jesus, antes de morrer, disse que ficaria no “coração da terra por três dias e três noites” (Mt 12.40). Logo ao ressuscitar, ao ser abordado por Maria, Jesus declarou: “ainda não subi”. Os textos do Novo Testamento parecem indicar claramente que ele não subiu ao céu quando morreu na cruz, muito pelo contrário, ele desceu à “mansão dos mortos”, mas, com a esperança de que Deus o ressuscitaria, tirando-o de lá. Exatamente por isso já dizia o salmista pelo espírito de Cristo que nele estava: “O Senhor está diante de mim e eu não me abalarei. Por isso meu coração se alegrou e a minha língua exultou. Além disso, minha carne repousará em esperança, porque não me deixarás no hades, nem permitirás que meu corpo se deteriore” (At 2.25-27). Davi, o autor destas palavras, morreu e seu corpo se deteriorou, mas, sendo profeta, se referia à ressurreição de Cristo, pois este sim, nem foi abandonado no hades, nem seu corpo se deteriorou; pois Deus o ressuscitou e o exaltou à sua direita, no céu dos céus.
Davi não subiu ao céu, mas Jesus, após a ressurreição, foi elevado ao céu e assentou-se à destra de Deus (At 2.29-36). Era a respeito desta esperança de não ser deixado no hades que Jesus fazia menção quando disse “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Ele confiava que Deus cumpriria sua parte quando chegasse a hora. No terceiro dia, Deus “rompeu os grilhões da morte e o ressuscitou” (At 2.24).
Quando Jesus disse ao ladrão na cruz que ele estaria no paraíso, Jesus não estava afirmando que ambos estariam no paraíso no mesmo dia. À luz do ensino do Novo Testamento, tudo indica que o texto em Português teria sido melhor construído se as pontuações tivessem sido colocadas nos lugares certos, e em vez de “te digo uma verdade: hoje estarás comigo no paraíso”, o texto deveria ser vertido para o Português como “te digo uma verdade hoje: estarás comigo no paraíso”. Alguns têm dificuldade de entender o sentido de Jesus ter usado a palavra “hoje” se sua intenção realmente era essa. “Afinal”, especulam, “não teria sentido Jesus dizer, em verdade te digo amanhã ou em verdade te digo ontem”. Acham que Jesus estava usando a palavra “hoje” para dizer que estava indo com o ladrão para o paraíso assim que seus espíritos saíssem dos corpos pregados na cruz. No entanto, o que estes parecem não perceber é que Jesus estava se dirigindo a um homem que viveu uma vida inteira de pecados, e, aos 45 do segundo do tempo, em seu último dia de vida, o homem parecia estar se arrependendo e reconhecendo o único caminho de volta para casa do Pai. Jesus não parecia querer enfatizar que “naquele mesmo dia” o ladrão estaria no paraíso, e sim que “mesmo naquele dia”, Jesus poderia lhe garantir o paraíso. Nada mais propositivo do que Jesus dizer “Hoje eu vou te dizer uma grande verdade, você vai para o paraíso!”. Sabemos que os textos originais do Novo Testamento não foram escritos com as notações léxicas que temos em nossas Bíblias e que as pontuações foram colocadas nos lugares aparentemente mais coerentes, de acordo com a interpretação dos eruditos, cujo precioso trabalho, nos rendeu as versões que temos em nossas mãos. Porém, como dizem as apresentações das versões de João Ferreira de Almeida, “Toda tradução ou revisão da Bíblia Sagrada, ainda que levada a termo por íntegros peritos bíblicos, é sempre trabalho humano e, como tal, sujeito a falhas; por outro lado, no entanto, suscetível de melhoria”.
A dificuldade para alguns evangélicos em aceitar esta interpretação da morte de Cristo na cruz e a correta interpretação de algumas das suas últimas palavras, é porque eles temem que com isso estejam concordando com ideias de segmentos cristãos que, segundo eles, são considerados como seitas. Por outro lado, não podemos mudar a verdade das Escrituras apenas porque alguém de quem não gosto ou que pensa diferente de mim, consegue reconhecer a mesma verdade sobre uma determinada questão. Sei que alguns usam uma abordagem parecida com a minha sobre o texto de Lucas 23.43 para argumentar que quem morre fica “inconsciente” e “dormindo” em um suposto “sono da alma”; e, embora eu discorde totalmente disso, essa é uma coisa que não tem necessariamente ligação com a outra. Mexer na interpretação de um ponto aparentemente insignificante na tentativa de “se distanciar” de certos grupos ou interpretações equivocadas pode me fazer ficar mais longe da verdade bíblica sem que eu perceba. Um pequeno grau fora da rota, no começo da viagem, pode me levar para bem longe do meu destino, no final do trajeto. Afinal, nada podemos contra a verdade, senão em favor da própria verdade (2Co 13.8).