A Morte e Ressurreição do Espírito Humano
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, uma “duplicata em espécie da categoria divina”. Não é por acaso que Lucas, ao construir a geneaologia de Jesus, quando chega em Adão ele diz que este era filho de Deus. De tudo que foi criado no início do mundo, o homem foi o único que não fora criado por uma palavra de comando de Deus. Todas as coisas foram criadas pela Palavra de Deus, menos o homem.
Gênesis 2.7
Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.
O corpo do homem veio do pó, o espírito do homem veio de dentro de Deus e a alma humana é o resultado da união entre este espírito e o corpo criado. O homem, como filho de Deus, foi destinado para ser o Senhor de toda a terra, sujeitando-a e subjulgando os animais e todo o restante da criação.
Acredito que a Bíblia se trata de uma revelação progressiva. É quando chegamos no Novo Testamento que entendemos melhor a constituição do gênero humano. Paulo é aquele que faz a declaração mais precisa das Escrituras sobre a natureza humana:
1 Tessalonicenses 5.23
O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.
Este é o homem: espírito, alma e corpo! Alguns chegaram a pensar que apenas o espírito de Adão tinha vindo diretamente de Deus, ao passo que o espírito dos outros seres humanos viriam de seus pais. Alguns cristãos até chegaram a usar o texto de Gênesis 2.21-24 para tentar argumentar em favor desta ideia. Como o texto em questão, ao relatar a criação de Eva, não fala explicitamente sobre o seu espírito ter sido uma extensão divina representada pelo sopro de Deus, como no caso de Adão, alguns passaram a pensar que isso significasse que o espírito de Eva tinha vindo junto com a costela que fora retirada do corpo de Adão.
Desde os primórdios do Cristianismo o debate sobre a mais provável origem do espírito humano vem sendo travado. Os assim chamados “pais da igreja” como Orígenes, Pelágio, Tertuliano, Agostinho e outros, estiveram envolvidos em discussões filosóficas e doutrinárias tentando chegar ao que seria a ideia mais bíblica sobre o assunto. Podemos citar pelo menos três das principais ideias que surgiram a esse respeito:
- A suposta pré-existência do espírito humano;
- O espírito humano viria dos pais;
- O espírito humano seria criado na gestação.
Acredito que o espírito humano seja gerado por Deus no momento em que um novo ser humano é gerado na terra. Afinal, Deus é chamado de Pai dos espíritos em Hebreus 12.9. O corpo vem dos pais, mas o espírito vem de Deus.
Se cada nova criança já nasce espiritualmente separada de Deus como sugerem algumas interpretações, então este novo espírito humano gerado por Deus ou já vem com “defeito de fábrica”, ou morre espiritualmente no momento em que entra no corpo. Além disso, se a criança já nasce espiritualmetne morta, separada de Deus, por quê Jesus teria dito que elas são as verdadeiras cidadãs do reino dos céus?
Em defesa da ideia de que as crianças nascem espiritualmente alienadas de Deus alguns gostam de usar Romanos 5.12. No entanto, acredito que as pessoas que se baseiam neste texto não devem ter prestado muita atenção ao que está escrito.
Romanos 5.12
Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram.
O que Paulo está dizendo é que “assim como aconteceu com Adão, assim também aconteceu com todos”, ou seja: Adão pecou e morreu; da mesma forma, a morte passou a todos, porque todos pecaram! Contudo, por incrível que pareça, algumas pessoas acharam que neste texto Paulo estava dizendo que as crianças já nascem pecadoras, espiritualmente mortas, por causa do pecado de Adão.
Alguns acreditam que o pecado é passado desde Adão a cada nova pessoa que nasce. Mais ou menos como as características de um pai é passada ao filho através de informações genéticas. Porém, as Escrituras ensinam que o filho não seria culpado do pecado do seu pai, mas cada alma que pecar, essa morrerá (Ezequiel 18.19-20). Cada um dara contas de sua própria vida diante de Deus.
Em Romanos 5.12 Paulo não está ensinando que o homem nasce espiritualmente morto, mas sim que morre epiritualmente quando peca. “Porque o salário do pecado é a morte” (Romanos 6.23). O pecado vem primeiro e a morte vem depois, é sempre assim.
Neste momento alguém poderia se perguntar se é possível que algum ser humano consiga viver sem pecar desde a infância. Eu diria que é simplesmente impossível que qualquer ser humano consiga crescer neste mundo sem cometer qualquer pecado. Claro que Adão é culpado de os homens se tornarem pecadores, mas a questão é: Como isso acontece? Adão é responsável pelo meu pecado? Eu sou pecador por causa de Adão ou me torno pecador por causa dos meus pecados?
A Bíblia diz que “no princípio a palavra estava com Deus e era Deus”. Diz também que “todas as coisas foram feitas por intermédio desta palavra”, e, que, “sem ela, nada do que foi feito se fez”. De fato, “a vida estava nesta palavra e esta vida da palavra era o que iluminava os homens” (João 1.1-4). Este texto do Evangelho de João nos ensina que a vida da palavra era aquilo que iluminava o espírito humano. Ainda que a Árvore da Vida fosse uma árvore literal, ela tinha em si a ideia de uma verdade superior que Deus pretendia comunicar ao homem. A vida que iluminava o homem não dependia de uma mordida no fruto certo, mas da comunhão do homem com aquilo que Deus lhe dizia. Não seguir a palavra de Deus significava perder a vida. E foi exatamente isso o que aconteceu.
Gênesis 3.24
E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.
O versículo acima demonstra que o homem perdeu o acesso à vida, que segundo o texto do Evangelho de João, estava na palavra de Deus. O homem perdeu a “vida da palavra”, à qual tinha acesso antes do pecado. Deste dia em diante, os homens ficaram fadados a enfrentar as tentações sem a força espiritual que somente a palavra poderia lhes ter dado. Ainda que as crianças nascessem com a vida de Deus em seus espíritos, à medida que estivessem crescendo neste mundo onde Satanás havia se tornado deus, elas seriam sufocadas e contaminadas.
Jesus, diferentemente das outras crianças, cresceu fisicamente e espiritualmente.
Lucas 2.52
E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens.Lucas 2.40
Crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele.
Os outros seres humanos não tiveram essa mesma oportunidade, pois perderam o acesso à vida. Ao crescerem fisicamente neste mundo, sem crescerem espiritualmente, os homens vão se tornando espiritualmente insesíveis, acabam entregando-se ao pecado e ficam alienados da vida de Deus. Por isso Paulo diz que “todos pecaram” e não que todos “já nasceram pecadores” (Romanos 3.23).
A condenação que veio sobre os homens por causa do pecado de Adão não transforma os homens em “pecadores por nascimento”, assim como a graça de Deus sobre a humanidade por causa de Jesus não transforma automaticamente os homens em justos. O pecado de Adão não matou os espíritos humanos pelo simples fato de nascerem, tanto quanto a obediência de Jesus não leva todos os homens ao céu só porque “o preço já foi pago”. Tanto a morte espiritual causada pelo pecado de Adão, quanto a salvação proporcionada por Cristo, precisam ser individualizadas na experiência humana.
Romanos 5.18,19
18 Pois assim como, por uma só ofensa, veio o JUÍZO SOBRE TODOS OS HOMENS para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a GRAÇA SOBRE TODOS os homens para a justificação que dá vida.
19 Porque, como, pela desobediência de um só homem, MUITOS SE TORNARAM PECADORES, assim também, por meio da obediência de um só, MUITOS SE TORNARÃO JUSTOS.
O que Cristo fez libera sobre todos os homens a graça de Deus para serem salvos, mas apenas quando a pessoa crê em seu coração é que ela é finalmente justificada. O que Adão fez condena os homens a cresceram sem a palavra de Deus em seus corações, mas apenas quando a criança perde a sensibilidade espiritual e passa a pecar é que ela morre espiritualmente e se transforma em uma pecadora que precisa de salvação.
Por falta de compreensão a respeito destas questões algumas pessoas até gostam de citar versículos dos Salmos que, segundo eles, parecem provar que o homem já nasce espiritualmente mau. Veja o exemplo a seguir:
Salmo 58.3
Desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras.
Alguns pensam que o texto acima está confirmando a ideia de que assim que a criança nasce, ela já é pecadora. Como se fosse possível que no dia do parto ela já pudesse abrir a boca e “proferir uma mentira”. Ora, está claro que o salmista está simplificando a situação para dizer que “desde muito novo” o homem já começa a mentir e a pecar. Quando ele diz “nascem e já se desencaminham” é óbvio que ele não está dizendo que um bebê nasce pela manhã e já pela tarde estará pecando e mentindo para os parentes que vierem lhe visitar. Quando o escritor diz que os homens “assim que nascem já se desencaminham proferindo mentiras”, ele quer dizer que pela época que a pessoa já é capaz de articular frases inteligíveis e argumentos objetivos, ela se desencaminha do bem ao começar a mentir e a pecar. Além disso, observe também que o salmista diz que aqueles que em sua fase adulta podem ser considerados como ímpios, um dia tiveram que “se desviar” ou “se desencaminhar” para que se tornassem mentirosos. Ora, não se usaria as expressões “se desviam” e “se desencaminham” se não fosse para indicar que a pessoa sai de uma condição positiva para uma condição negativa.
Eis aí outro texto citado equivocadamente:
Salmo 51.5
Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.
O erro de usar o texto acima para fundamentar a ideia de que todas as crianças do mundo “nascem em pecado” é um erro simples de interpretação de texto. Primeiro, porque temos inúmeras passagens que confirmam a declaração de Jesus de que as crianças são cidadãs do reino dos céus e que trazem características de pureza, que refletem essa natureza espiritual que lhes é pertinente. Quando as Escrituras apontam para alguma maldade relacionada a uma criança, tal maldade não tem origem em seu espírito, mas sim em suas inclinações carnais, que, posteriormente, até sufocarão seu espírito e a farão morrer espiritualmente. Seria um erro se apegar a um ou dois versículos isolados e desprezar todo o testemunho bíblico sobre a natureza espiritual das crianças. Em segundo lugar, usar a declaração pessoal do salmista sem considerar sua natureza particular e generalizar a declaração sem qualquer critério, seria uma tolice. O salmista estava simplesmente falando que seu nascimento esteve envolto em pecado e que sua mãe lhe concebeu assim, em pecado. Algumas pessoas preferem pensar que ele estava falando de si mesmo, mas não consideram a possibilidade dele ter falado sobre o contexto relacionado aos seus pais: “minha mãe me concebeu em pecado”. Na verdade, o salmista parece querer enfatizar o fato de que o pecado o cerca “desde o nascimento” e que por isso ele reconhece que seus pecados mais recentes teriam sido influência direta deste contexto. Todavia, ele reconhece sua culpa pessoal diante de Deus dos atos por ele praticados. Ele não atribui seus erros a uma suposta condição da qual ele não pudesse fugir. Ele diz “[EU] PEQUEI contra ti, contra ti somente, e [EU] FIZ o que é mal perante os teus olhos…” (Salmo 51.4). Ele não está querendo dizer que não pecou contra Urias ou que pecados contra seres humanos não são importantes. O salmista está dizendo também que mesmo tendo crescido em meio ao pecado, ele não se esquivava pondo a culpa em outros, pois reconhecia seus erros diante de Deus. É possível que ele esteja simplesmente dizendo que a despeito do contexto pecaminoso no qual ele nasceu ele reconhecia que ainda assim tinha a responsabilidade de fazer o que era certo diante de Deus, e, como ele tinha pecado, a culpa era dele mesmo e não dos seus pais que em pecado o haviam gerado. É como se ele estivesse dizendo: “Eu sei que estou cercado pelo pecado desde que nasci, mas não quero usar isso como desculpa para justificar meus erros, pois quando peco eu sei que estou em falta para contigo e a ti prestarei contas”.
Foi exatamente por causa desta ideia de que “a criança já nasce com pecado” que o padre Católico Agostinho iniciou a doutrina do batismo infantil, na tentativa de supostamente “perdoar o pecado original”. Agostinho acreditava que uma criança não batizada, se morresse, seria mandada para o inferno, mas uma vez batizada (não por sua vontade, mas pela vontade dos pais) iria para o céu. Claro que sua ideia era de uma “graça irresistível” e uma conversão pela força; neste caso em particular pela imposição dos pais sobre os filhos. Em suas palavras “se nada for feito pelas crianças no batismo, forçando-as a serem unidas ao corpo de Cristo, a sorte delas será a perdição eterna” (Forster, em God’s Strategy in Human History, página 272).
A vida em pecado, na qual os homens vivem, é consequência da insensibilidade espiritual que foi tomando conta de suas vidas desde a infância até a fase adulta. Os textos do Novo Testamento explicam isso melhor. Paulo fala um pouco sobre o assunto em sua carta aos efésios:
Efésios 4.17-19
17 Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos,
18 obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração,
19 OS QUAIS, TENDO-SE TORNADO INSENSÍVEIS, se entregaram à dissolução para, com avidez, cometerem toda sorte de impureza.
Paulo está fazendo referência ao fato de que os homens se entregam à dissolução para praticar pecados porque em um determinado momento de suas vidas eles SE TORNARAM INSENSÍVEIS. Obviamente que isso aconteceu em algum momento da infância, quando descobriam os desejos carnais e a eles cederam. É importante observar que Paulo está claramente dizendo que os homens que andam na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus não nasceram assim. Hoje eles tem seus corações endurecidos pelo engano do pecado e se entregam à dissolução para cometerem toda sorte de impureza, mas, segundo Paulo, a razão deste estilo de vida que hoje possuuem, se deve ao fato de em certo momento das suas vidas eles terem se tornado insensíveis. Pense sobre isso.
Pedro também, em sua segunda carta, menciona as “contaminações do mundo”, mostrando assim que, se as crianças já nascessem espiritualmente impuras, elas não poderiam ser “contaminadas”. Contaminação é uma palavra que se usa para descrever a penetração de uma coisa impura dentro de outra que seja pura. Se as crianças nascessem espritualmente mortas, o mundo não as contaminaria. De fato, Pedro ainda diz que as pessoas que são salvas pelo conhecimento do Senhor Jesus e voltam ao estilo de vida anterior, estão na verdade se “enredando DE NOVO” com as coisas do mundo que contaminam o homem. Em outras palavras, o ser humano nasce com um espírito puro, mas as coisas do mundo o contaminam. Ao nascer de novo a pessoa escapa destas contaminações, mas, ao ceder às coisas do mundo novamente, a pessoa está se “envolvendo de novo” com as mesmas coisas que anteriormente a havia contaminado.
2 Pedro 2.20
Portanto, se, depois de terem escapado das CONTAMINAÇÕES DO MUNDO mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, se deixam ENREDAR DE NOVO e são vencidos, tornou-se o seu último estado pior que o primeiro.
Paulo exemplifica como isso aconteceu com ele ao contar sua experiência de vida em sua carta aos Romanos.
Romanos 7.7-13
7 Que diremos, pois? É a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás.
8 Mas O PECADO, tomando ocasião pelo mandamento, DESPERTOU EM MIM toda sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado.
9 Outrora, sem a lei, EU VIVIA; mas, sobrevindo o preceito, REVIVEU O PECADO, e EU MORRI.
10 E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para morte.
11 Porque O PECADO, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento, ME ENGANOU e ME MATOU.
12 Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom.
13 Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Pelo contrário, O PECADO, para revelar-se como pecado, por meio de uma coisa boa, CAUSOU-ME A MORTE, a fim de que, pelo mandamento, se mostrasse sobremaneira maligno.
Observe que Paulo disse que:
- O pecado sequestrou o mandamento e despertou em Paulo desejos contrários ao próprio mandamento;
- Paulo disse que antes de ele ser ensinado sobre as coisas da lei ele estava vivo, mas quando o pecado reviveu, ele morreu. Enquanto o pecado estava morto, Paulo estava vivo, quando o pecado reviveu, foi Paulo que morreu;
- Paulo disse claramente: “O pecado me matou” (versículo 11);
- Paulo confirma a declaração anterior: “O pecado causou-me a morte” (versículo 13).
Paulo estava vivo… pecou… morreu… e, depois, como já sabemos, nasceu de novo em Cristo Jesus! Assim também todos nós: nascemos com a vida de Deus em nosso espírito, pecamos e perdemos a vida, depois, precisamos nascer de novo para voltar à comunhão com Deus. A criança nasce primeiro como cidadã do reino de Deus, se distancia da casa do pai como o filho pródigo, depois que nasce de novo ela volta e é recolocada no reino do filho do amor de Deus.