VINHO: Beber ou não beber? Eis a questão!
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Este será o primeiro artigo de uma série que pretendo escrever sobre a questão do vinho na Bíblia. Na verdade nunca me preocupei muito com este assunto; e ainda que antes de seguir a Cristo eu bebesse tudo, inclusive vinho, depois que confessei a Jesus como Senhor, simplesmente parei de beber. As bebidas alcoólicas, juntamente com os outros tipos de narcóticos que usava, nunca mais foram uma tentação ou problema pra mim. Sendo assim, questões relacionadas à bebida alcoólica caíram no limbo do meu total desinteresse.
Ao longo dos anos, ao me deparar com alguns textos bíblicos relacionados ao vinho, um questionamento ou outro percorria minha mente, mas o interesse para estudar o assunto nunca havia despertado de fato. Apenas recentemente por meio de uma pergunta singela feita por um irmão foi que, pela primeira vez, senti uma motivação maior para estudar a fundo o que a Bíblia realmente ensina sobre a embriaguez e a suposta aprovação bíblica para o uso “moderado” do vinho “desde que a pessoa não chegue a ficar bêbada”.
Para minha surpresa, depois de um tempo na vida cristã, passei a conhecer inúmeros irmãos que não só bebiam como também faziam apologia ao consumo de vinho, chegando até mesmo a ridicularizar “os crentes fracos” que não bebiam “de vez em quando”. Sim, é isso mesmo que você entendeu! Alguns cristãos pensam que beber socialmente ou moderadamente é uma espécie de sinal de maturidade ou intelectualidade cristã. Certa vez minha esposa estava em determinado evento e os irmãos que a cercavam lhe encorajavam a beber uma taça de champanhe, e alguns na tentativa de fazer com que ela abrisse mão de suas rejeições disseram: “Pode beber Ana, não é pecado não, só é pecado mesmo se embriagar”. Foi quando então ela precisou explicar: “Gente, eu nunca bebi minha vida inteira antes de ser crente, agora que me converti sou obrigada a beber?” Isto poderia ser até engraçado se não fosse tão patético.
A despeito de todas as declarações médicas e científicas de que o álcool cause degeneração no cérebro e no corpo humano, de que seja prejudicial à saúde e não acrescente nada de positivo na vida de ninguém, muitos cristãos ainda gostariam de uma resposta clara proveniente das Escrituras Sagradas sobre o assunto. No entanto, o que fazer quando nos deparamos com tantos textos que parecem se contradizer a respeito do tema? Um exemplo que resume sucintamente uma gama de outras passagens aparentemente paradoxais se encontra na comparação do Salmo 104 com Provérbios 20: “É o Senhor que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: O VINHO, QUE ALEGRA O CORAÇÃO DO HOMEM; o azeite, que lhe faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor” (Sl 14.14,15) e “O VINHO É ZOMBADOR e a bebida fermentada provoca brigas; não é sábio deixar-se dominar por eles” (Pv 20.1). Afinal, o vinho vem de Deus para alegrar meu coração ou é escarnecedor e fonte de confusões?
O nosso problema é não considerarmos o abismo cultural e linguístico que há entre tais textos, quando foram escritos, e a nossa época. As palavras hebraicas e gregas que foram traduzidas por “vinho” em nossas Bíblias eram palavras que em suas épocas poderiam estar se referindo tanto ao simples suco de uva não fermentado, quanto ao suco fermentado, e, por isso, neste caso, alcoólico. A única forma de se compreender a respeito de qual tipo de “vinho” está sendo falado será através do contexto onde a palavra aparece.
Os eruditos judeus que traduziram o Antigo Testamento do hebraico para o grego cerca de 200 anos antes de Cristo empregaram a palavra grega “oinos” para traduzir várias palavras hebraicas que significam tanto o “vinho alcoólico” quanto o simples “suco de uva”. Este Antigo Testamento grego, conhecido como Septuaginta, tornou-se muito popular e amplamente citado no período Neo Testamentário. Também os escritores do Novo Testamento entendiam que a palavra grega “oinos”, que em nossas Bíblias aparece como “vinho”, podia referir-se ao suco da uva, COM ou SEM fermentação.
Quanto à questão da suposta impossibilidade de conservar o suco da uva nos tempos bíblicos, sem que este viesse a fermentar, falarei depois em próximos textos. Mas para os que se apressarem a dizer que seria impossível tal coisa porque “Louis Pasteur sequer tinha nascido” e ainda não existia o conhecido processo de “pasteurização”, é bom que se diga que desde tempos imemoriais são usadas técnicas naturais de esterilização e filtração no preparo do suco da uva, possibilitando a conservação do simples suco doce sem que este viesse a fermentar. Devido às limitações da época quanto à refrigeração, o vinho era frequentemente fervido até que o líquido evaporasse, resultando numa pasta espessa (não alcoólica) que poderia ser armazenada com imensa facilidade. A consistência desta pasta seria semelhante a de uma moderna geleia ou gelatina de uva, uma espécie de xarope. Um historiador romano chamado Plínio, que viveu nos anos 23 a 79 d.C., em seu livro “Histórias Naturais” disse que o vinho não alcoólico poderia ser conservado neste estado por até 10 anos, e mencionou que sua consistência se assemelhava à consistência do mel. Plutarco, um ensaísta grego, que viveu entre os anos 46 e 120 d.C., escreveu em sua obra intitulada “Moralia” que “o vinho filtrado não inflama o cérebro nem afeta a mente ou as paixões e é muito mais prazeroso para se beber”; com isto ele estava mencionando sua preferência pelo vinho não fermentado. Aristóteles, o filósofo grego, que viveu entre os anos 384 e 322 antes de Cristo, mencionou “um vinho que era tão grosso que era necessário raspá-lo dos odres [nos quais eram armazenados para não fermentar] e dissolvê-los na água”.
Embora em nossos dias a palavra “vinho” seja usada quase exclusivamente para se referir à bebida alcoólica é importante entender, como vimos nos exemplos citados acima, que nos tempos antigos não era assim. Por falta de informações como estas algumas pessoas ao lerem a Bíblia pensam que sempre que ela se refere a “vinho”, isto significa que ela está falando de bebida fermentada, bebida alcoólica. Por esta razão algumas pessoas concluíram, equivocadamente, que o próprio Jesus usou “bebida alcoólica” para celebrar o que chamamos de “a ceia do Senhor”.
No entanto, basta-nos lembrar que Jesus instituiu a “Santa Ceia” quando ele e seus discípulos estavam celebrando a Páscoa. Textos bíblicos que falavam sobre a celebração da Páscoa eram bem claros a respeito do uso de bebida alcoólica durante tal celebração. Vemos em Êxodos 12 que durante a semana daquele evento era expressamente proibida a presença de fermento ou de qualquer agente fermentador em suas refeições, incluindo suas bebidas. No mundo antigo o agente fermentador mais comum era obtido da espuma espessa da superfície do vinho quando em fermentação.
Paulo, profundo conhecedor da cultura judaica, determinou que os crentes coríntios tirassem dentre eles o “fermento espiritual”, ou seja, o agente fermentador “da maldade e da malícia”, porque Cristo é a nossa Páscoa (1 Coríntios 5.6-7). Paulo usa os termos de forma ilustrativa para se referir a Cristo; contudo o paralelo que ele faz demonstra o seu conhecimento bíblico da importância da ausência do fermento em relação à páscoa, pois o fermento é símbolo de corrupção e pecado. Seria contraditório usar na Santa Ceia um símbolo da maldade como a bebida alcoólica, que é algo que contem levedura ou fermento, se considerarmos os objetivos dessa ordenança do Senhor, bem como as exigências bíblicas para dela participarmos.
Até mesmo outros documentos judaicos afirmam que o uso do vinho não fermentado na Páscoa era comum nos tempos do Novo Testamento. The Jewish Encyclopedia, edição de 1904. V.165, ao discorrer sobre Jesus diz o seguinte: “Segundo os Evangelhos Sinóticos, parece que no entardecer da quinta-feira da última semana de vida aqui, Jesus entrou com seus discípulos em Jerusalém, para com eles comer a Páscoa na cidade santa; neste caso, o pão e o vinho do culto de Santa Ceia instituído naquela ocasião por ele, como memorial, seria o pão asmo e o vinho não fermentado do culto Seder”.
Alguns estudiosos induzidos pela ideia de que “vinho na Bíblia” se referia unicamente a bebida alcoólica, acabaram concluindo que durante a Ceia existia uma real possibilidade das pessoas se embriagarem. Tal entendimento facilitou o surgimento de versões bíblicas que oferecem essa ideia por falta de opções plausíveis na cabeça dos tradutores. Um bom exemplo se encontra em 1 Coríntios 11.21.
1 Coríntios 11.20,21
20 Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor,
21 porque cada um come sua própria ceia sem esperar pelos outros. Assim, enquanto um fica com fome, OUTRO SE EMBRIAGA.
Os desavisados, ou simplesmente favoráveis à bebida alcoólica, ao lerem textos como este correm logo para argumentar: “Como os cristãos poderiam ficar bêbados com o vinho da ceia se ele não fosse alcoólico?” ou “Veja que mesmo em meio à bebedeira dos irmãos Paulo não os repreende por causa disso, como se fosse melhor não beber bebida alcoólica”. Em outras palavras, com base nesta tradução alguns supõem que se o vinho alcoólico era usado pelos coríntios na celebração da Ceia e o Apóstolo não os repreendeu especificamente por isso, então pode ser usado hoje em dia também!
A verdade é que a palavra grega “methuo” que aí aparece e é comumente traduzida nas Escrituras por “embriagar-se” ou “estar bêbado” (e outras coisas semelhantes), não se restringe a este único e exclusivo significado. De fato, o contexto deve ser considerado para a correta interpretação do seu sentido.
A Septuaginta, famosa e já citada versão grega do Antigo Testamento, apresenta inúmeros exemplos onde a palavra “methuo” e seus derivados é usada no sentido genérico de algo ou alguém “completamente cheio”. Um destes exemplos se encontra no Salmo 23.5 que em português diz “meu cálice TRANSBORDA” (a palavra grega que aí foi usada pode ser interpretada como estar “cheio até a borda”). Outro exemplo é o Salmo 65.10: “Tu ENCHES de água os seus sulcos” (ARC). Em Jeremias 31.14 a mesma palavra grega aparece na Septuaginta, e, neste versículo, em português, esta palavra é comumente traduzida por “saciar”, como na versão Revista e Atualiza de João Ferreira de Almeida: “SACIAREI de gordura a alma dos sacerdotes, e o meu povo se fartará com a minha bondade, diz o Senhor”. Em Cantares 5.1 a mesma palavra foi assim traduzida: “Comei e bebei, amigos; bebei FARTAMENTE, ó amados”. Veja que estes textos originalmente escritos em hebraico ao serem traduzidos para o grego foram representados exatamente pela mesma palavra grega “methuo” que aparece em 1 Coríntios 11.21, que, neste caso em particular, foi pobremente traduzida por “embriagar-se”. Se o contexto imediato de 1 Coríntios 11 e também o pensamento Paulino quanto à embriaguez tivessem sido considerados com mais perspicácia, os tradutores poderiam ter optado por um destes significados que vimos acima que melhor refletisse o pensamento de Paulo naquele momento.
Os exemplos do uso da palavra “methuo” que observamos na Septuaginta claramente demonstram que a palavra era frequentemente usada nas Escrituras em um sentido genérico para expressar ideias tais como abundância, satisfação, ou saciedade. Sobre 1 Coríntios 11.21 é uma pena que não encontremos muitas versões em português que tenham optado por uma tradução que reflita a ideia de saciedade ou abundância, mas podemos citar pelo menos duas:
- Bíblia Ave Maria: “Porquanto, mal vos pondes à mesa, cada um se apressa a tomar sua própria refeição; e enquanto uns tem fome, outros SE FARTAM”;
- Versão O Livro: “E assim cada um procura servir-se sem esperar por repartir com os outros, de tal forma que uns não comem o suficiente e outros EXCEDEM-SE!”
Em Inglês, para citar poucas, podemos enumerar:
- O Novo Testamento de Worsley: “Pois ao comer cada um toma sua própria ceia primeiro; e um fica com fome e o outro EMPANZINADO”;
- O Novo Testamento dos Oráculos Vivos: “Pois, ao comê-la, cada um toma primeiro sua própria ceia; e um, de fato, fica com fome, e um outro FICA CHEIO”;
- A Tradução de Charles Thomson: “Pois cada um ao comer toma primeiro sua própria ceia, e assim, de fato, um fica com fome e outro PLENAMENTE ALIMENTADO”.
Ao ler com mais atenção o contexto de 1 Coríntios 11 ficará claro que Paulo está querendo chamar a atenção dos irmãos ao absurdo por eles praticado em relação a esta refeição sagrada inicialmente instituída pelo Senhor. Enquanto aquele momento deveria ser uma ocasião solene para relembrar a morte de Cristo por todos os presentes, e, EM COMUNHÃO, todos participarem do mesmo pão e do mesmo cálice, eles estavam: “Se ajuntando para pior e não para melhor” (verso 17), “divididos” (verso 18), “menosprezando e envergonhando irmãos na igreja” (verso 23) e “tomando suas próprias ceias particulares” (verso 21).
Observe que o ponto em questão não é qualquer suposta embriaguez, mas o desprezo consciente dos irmãos na hora de cearem juntos. Por isso no versículo 21 Paulo vai dizer que “a desconsideração de uns para com os outros estava fazendo com que alguns ficassem com fome e outros de barriga cheia”.
Em meio à lista de eruditos que possuem esta compreensão deste texto, se encontram: Crisóstomo, Bengel, Grotius, Wycliff, Kuinoel, Bilroth, MacKnight, Newcome, Bloomfield, Clarke, Lightfoot, Dean Stanley, e Whedom. Outro que deve ser mencionado em destaque é Clemente de Alexandria, que viveu apenas um século depois de Paulo. Em seu livro “Instrutor” (Livro 2, 1), Clemente contradiz a sugestão de que vinho alcoólico fora usado ali. Ele indica que o assunto em questão não era a bebida mas o alimento. Ele diz que Paulo os reprova por estarem obstinados pelas iguarias e por estarem comendo além da necessidade nutricional.
Se houvesse bebida alcoólica ali presente, e alguns estivessem ficando realmente embriagados como nossas versões erroneamente sugerem, Paulo não teria simplesmente mencionado esta embriaguez sem fazer qualquer outro comentário adicional a respeito do assunto, pois sabemos o posicionamento de Paulo quanto à embriaguez. Foi ele mesmo quem disse: “Não vos embriagueis com vinho” (Efésios 5.18). Seria muito estranho que ao começar a escrever a carta Paulo já soubesse que eles “estavam se embriagando na hora da Ceia” mas, mesmo assim, tivesse dito 5 capítulos antes que “alguns deles tinham sido bêbados, mas não eram mais por terem sido lavados e santificados no nome do Senhor Jesus” (1 Coríntios 6.9-11). Além disso, faz-se necessário lembrar que em 1 Coríntios 5.11 ao falar sobre “compartilhar refeições com beberrões” Paulo foi muito claro: “não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for beberrão… com esse tal, nem ainda comais”. Com base nas próprias palavras de Paulo é justo supor que se alguém realmente estivesse “se embebedando na Santa Ceia” (como sugerem erroneamente algumas versões), certamente Paulo teria dito para os outros se afastarem daqueles.
Quando Paulo disse que eles deveriam “comer e beber em casa” (v. 22), ele queria que os irmãos entendessem que a Ceia tinha um significado superior e que não se tratava simplesmente de “comida e bebida”, porque se fosse apenas para comer e beber, que fizessem isso em casa. Paulo, nem de longe, estava sugerindo que “os que quisessem ficar bêbados fizessem isso na privacidade do seu lar”.
Se eles realmente estivessem se embriagando, como supõem alguns, obviamente que Paulo não teria deixado isso passar em branco, pois ele já tinha falado explicitamente contra a embriaguez em outras ocasiões; e se a bebida alcoólica estivesse realmente sendo usada, em vez de ele ter dito: “não tendes casas onde comer e beber?” Certamente ele teria falado: “não sabeis que não deveis embriagar-vos nem mesmo quando estiverdes sozinhos em casa? Muito menos na igreja, e ainda por cima na hora da Ceia!”.
A verdade é que no texto grego escrito por Paulo não há menção a qualquer tipo de “embriaguez”. Paulo estava na verdade tratando sobre dois extremos: gente com fome e gente de barriga cheia. A verdade é que em 1 Coríntios 11.21 Paulo não os está repreendendo por estarem embriagados porque no texto original não era esta a ideia que Paulo tinha em mente.
À luz de tal fato, qualquer “embriaguez” que SUPOSTAMENTE acontecesse ESPECIFICAMENTE NA IGREJA DE CORINTO, dificilmente ela poderia ser usada para provar o uso de bebidas alcoólicas na igreja primitiva. Até porque uma possível perversão de uma igreja local específica jamais poderia ser um indicativo de uma prática cristã generalizada. Além disso, se os coríntios tivessem se desviado das instruções que tinham sido entregues a eles por Paulo, seu mal comportamento não poderia servir de exemplo, e sim de advertência para nós!